26 mar 2021

Onde Burnout estaria se fosse descrita no DSM-5? (Parte 1)

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Em qual capítulo do DSM-5 estaria a Síndrome de Burnout, caso fosse contemplada por essa tão importante obra? Questão instigante.

A Classificação Internacional de Doenças, versão 11, a CID-11, documento elaborado pela Organização Mundial de Saúde, passa a valer, se não houver alterações de cronograma, no dia 01/01/2022. Na CID-11, pela primeira vez na série histórica deste documento, há a categorização da Síndrome de Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional.

Conforme a OMS, Burnout “é uma síndrome conceituada como resultante do estresse crônico no local de trabalho que não foi administrado com sucesso”.

De acordo com a CID-11, a síndrome é caracterizada por três dimensões:
1) sensação de esgotamento ou esgotamento de energia;
2) aumento da distância mental do trabalho ou sentimentos de negativismo ou cinismo relacionados ao trabalho; e
3) redução da eficácia profissional.

O documento salienta que o referido “esgotamento se refere especificamente a fenômenos no contexto ocupacional e não deve ser aplicado para descrever experiências em outras áreas da vida”.

Por outro lado, a Síndrome de Burnout não é descrita no principal catálogo de doenças mentais do mundo: o DSM (atualmente, na versão 5). Mas e se fosse: em que capítulo estaria? No capítulo dos Transtornos de Ansiedade? No capítulo dos Transtornos Depressivos? Em algum outro capítulo? Essa é a reflexão que proponho.

Pra começar, parto da hipótese de que se Burnout estivesse contemplado no DSM-5, provavelmente estaria no capítulo de “Transtornos Relacionados a Traumas e Estressores”. Isto porque, o próprio conceito da CID-11 atesta que a síndrome é “resultante do estresse crônico no local de trabalho”. Assim, se a síndrome é resultante de estresse, o capítulo do DSM-5 que engloba os transtornos relacionados ao estresse seria, na minha percepção, o melhor lugar para catalogar e recepcionar a Síndrome de Burnout.

Justificada a minha hipótese, relembro que, no DSM-5, fazem parte do capítulo de “Transtornos Relacionados a Traumas e Estressores”:
a) Transtorno de apego reativo;
b) Transtorno de interação social desinibida;
c) Transtorno do estresse pós-traumático;
d) Transtorno do estresse agudo;
e) Transtorno de adaptação.

Dessa forma, a primeira pergunta a ser respondida é: caso Burnout fizesse parte do capítulo de “Transtornos Relacionados a Traumas e Estressores”, a síndrome seria um transtorno específico ou “estaria dentro” de um transtorno já existente e descrito? Para chegarmos a essa resposta, é inevitável um estudo breve sobre cada um dos transtornos deste capítulo. É o que faremos.

a) Transtorno de apego reativo:

Pergunta a ser respondida: Burnout poderia se enquadrar como um transtorno de apego reativo? Resposta: Não.

Justificativa: Conforme o DSM-5, o transtorno de apego reativo é uma doença que tem prevalência exclusiva em crianças. Normalmente, o transtorno está relacionado com negligência ou privação social na forma de ausência persistente do atendimento às necessidades emocionais básicas de conforto, estimulação e afeição das crianças, por parte de cuidadores adultos.

b) Transtorno de interação social desinibida:

Pergunta a ser respondida: Burnout poderia se enquadrar como um transtorno de interação social desinibida? Resposta: Não.

Justificativa: Conforme o DSM-5, o transtorno de interação social desinibida é uma doença que tem prevalência exclusiva em crianças. O transtorno está relacionado com um padrão de comportamento que envolve uma conduta (da criança) excessivamente familiar e culturalmente inapropriada com pessoas estranhas.

c) Transtorno do estresse pós-traumático (TEPT):

Pergunta a ser respondida: Burnout poderia se enquadrar como um TEPT? Resposta: Penso que não.

Justificativa: Lembremos que, conforme a CID-11, o Burnout é resultante do estresse crônico no local de trabalho. Já o TEPT, conforme o DSM-5, decorre, como regra, da exposição do indivíduo a um ou mais episódios concretos ou ameaças de morte, lesão grave ou violência sexual.

Essa exposição gerará os chamados “sintomas intrusivos” (como por exemplo, lembranças e sonhos angustiantes e recorrentes do evento traumático), sofrimento psicológico intenso ante a qualquer sinal que rememore o evento traumático, evitação de estímulos associados ao evento traumático, alterações de humor, entre outros sinais e sintomas. Esse quadro clínico deve perdurar por mais de 30 dias (1 mês).

É preciso reconhecer que esse tipo de exposição a episódios concretos ou ameaças de morte, lesão grave ou violência sexual, salvo casos excepcionais, não é próprio de um ambiente laboral.

Mas sim, existem situações laborais específicas que podem causar o TEPT como doença ocupacional. Exemplos: motorista de ônibus que sofre ação de um sequestrador; guarda bancário vítima de assalto com violência; policial em situação de confronto armado; entre outros tantos.

d) Transtorno do estresse agudo (TEA):

Pergunta a ser respondida: Burnout poderia se enquadrar como um TEA? Resposta: Também penso que não.

Justificativa: Conforme o DSM-5, o TEA também decorre, como regra, da exposição do indivíduo a um ou mais episódios concretos ou ameaças de morte, lesão grave ou violência sexual.

Assim como no TEPT, essa exposição gerará os chamados “sintomas intrusivos”, sofrimento psicológico intenso ante a qualquer sinal que rememore o evento traumático, evitação de estímulos associados ao evento traumático, alterações de humor, entre outros sinais e sintomas.

No entanto, no TEA esse quadro clínico dura apenas de 3 a 30 dias depois do trauma, e não ultrapassa os 30 dias como ocorre no TEPT. É justamente nesse marcador temporal que reside a principal diferença diagnóstica entre o TEPT e o TEA.

Mais um a vez, é preciso reconhecer que esse tipo de exposição a episódios concretos ou ameaças de morte, lesão grave ou violência sexual, salvo casos excepcionais, não é próprio de um ambiente laboral.

Da mesma forma que no TEPT, existem situações laborais específicas que podem causar o TEA como doença ocupacional. Exemplos: motorista de ônibus que sofre ação de um sequestrador; guarda bancário vítima de assalto com violência; policial em situação de confronto armado; entre outros tantos.

e) Transtorno de adaptação:

Pergunta a ser respondida: Burnout poderia se enquadrar como um transtorno de adaptação? Resposta: Na minha opinião, sim.

Justificativa: Conforme o DSM-5, os critérios diagnósticos para transtorno de adaptação (também chamado de transtorno de ajustamento) são:

A. Desenvolvimento de sintomas emocionais ou comportamentais em resposta a um estressor ou estressores identificáveis (como por exemplo, o trabalho) ocorrendo dentro de três meses do início do estressor ou estressores.

B. Esses sintomas ou comportamentos são clinicamente significativos, conforme evidenciado por um ou mais dos seguintes aspectos:Sofrimento intenso desproporcional à gravidade ou à intensidade do estressor, considerando-se o contexto cultural e os fatores culturais que poderiam influenciar a gravidade e a apresentação dos sintomas.

1) Sofrimento intenso desproporcional à gravidade ou à intensidade do estressor, considerando-se o contexto cultural e os fatores culturais que poderiam influenciar a gravidade e a apresentação dos sintomas.

2) Prejuízo significativo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.

(Obs.: lembremos que, de acordo com a CID-11, a Síndrome de Burnout é caracterizada por três dimensões: (I) sensação de esgotamento ou esgotamento de energia; (II) aumento da distância mental do trabalho ou sentimentos de negativismo ou cinismo relacionados ao trabalho; e (III) redução da eficácia profissional. Essas três dimensões, em última instância, provocam um prejuízo significativo na vida profissional do indivíduo, o que também é descrito no transtorno de adaptação.)

C. A perturbação relacionada ao estresse não satisfaz os critérios de outro transtorno mental e não é meramente uma exacerbação de um transtorno mental preexistente.

D. Os sintomas não representam luto normal.

E. Uma vez que o estressor ou suas consequências tenham cedido, os sintomas não persistem por mais de seis meses.

Também conforme o DSM-5, a presença de sintomas emocionais ou comportamentais em resposta a um estressor identificável é o aspecto essencial dos transtornos de adaptação (Critério A). O estressor pode ser um único evento (p. ex., o término de um relacionamento afetivo), ou pode haver múltiplos estressores (p. ex., dificuldades profissionais acentuadas e problemas conjugais). Os estressores podem ser recorrentes (p. ex., associados a crises profissionais cíclicas, relacionamentos sexuais insatisfatórios) ou contínuos (p. ex., uma doença dolorosa persistente com incapacidade crescente, morar em área de alta criminalidade) e podem afetar um único indivíduo ou uma família inteira, um grupo maior ou uma comunidade (p. ex., um desastre natural). Alguns estressores podem acompanhar eventos específicos do desenvolvimento (p. ex., ir para a escola, deixar a casa dos pais, voltar para a casa dos pais, casar-se, tornar-se pai/mãe, fracassar em metas profissionais, aposentadoria).

Assim, dentro de três meses do seu início, se o estressor identificável for o trabalho e/ou aspectos relacionados a ele, isso poderá gerar sintomas emocionais ou comportamentais, tais como: (I) sensação de esgotamento ou esgotamento de energia; (II) aumento da distância mental do trabalho ou sentimentos de negativismo ou cinismo relacionados ao trabalho; e (III) redução da eficácia profissional. Esse quadro pode levar a um prejuízo significativo na vida profissional do indivíduo.

No parágrafo anterior, intencionalmente, misturei os critérios descritos para o transtorno de adaptação (DSM-5) com os critérios descritos para o Burnout (CID-11). A evidente harmonia entre esses critérios, quando o estressor identificável pertence o mundo do trabalho, me permite concluir que há uma clara sobreposição conceitual entre transtorno de adaptação relacionado ao trabalho e Síndrome de Burnout.

De forma mais enfática, no meu entender, existem sim casos de transtorno de adaptação relacionado ao trabalho que são diagnosticados como Síndrome de Burnout.

No entanto, para a CID-11, isso é um erro! Explico: conforme a CID-11, antes de qualificar alguém com Burnout é preciso, primeiro, excluir a possibilidade de que esse indivíduo possa ter transtorno de adaptação (ou qualquer outro transtorno relacionado ao estresse), transtorno de ansiedade ou transtorno do humor.

Em outras palavras: para a CID-11, se for transtorno de adaptação relacionado ao trabalho, não pode ser Burnout. Não há como ser as duas coisas.

Essa constatação não implica, nem de longe, dizer que o trabalho não possa atuar como um fator adoecedor. Sim, ele pode. E, nesses casos, independente do diagnóstico usado (quer seja transtorno de adaptação relacionado ao trabalho, quer seja Burnout), o trabalhador-paciente precisa e merece ter um tratamento um tratamento especializado.

Por justiça, vale sublinhar, desde já, que o trabalho saudável exerce uma função protetora da saúde mental, conforme já nos ensinou o Prof. Christophe Dejours.

A sobreposição existente entre transtorno de adaptação relacionado ao trabalho e Síndrome de Burnout abrange de forma completa as duas entidades a ponto de podermos dizer que um diagnóstico deveria se equivaler ao outro e vice-versa? Por ora, penso que não. Vislumbro casos em que os critérios para Burnout sejam satisfeitos, ao mesmo tempo em que os critérios de transtorno de adaptação relacionado ao trabalho possam não ser plenamente atendidos. Abordarei isso nos próximos textos dessa série que iniciamos hoje.

Um forte abraço a todos! Se cuidem.

Autor: Marcos Henrique Mendanha (Instagram: @professormendanha): Médico do Trabalho, Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas. Advogado especialista em Direito do Trabalho. Autor do livro “Limbo Previdenciário Trabalhista – Causas, Consequências e Soluções à Luz da Jurisprudência Comentada” (Editora JH Mizuno), e “Medicina do Trabalho e Perícias Médicas – Aspectos Práticos e Polêmicos” (Editora LTr). Coautor do livro “Desvendando o Burn-Out – Uma Análise Multidisciplinar da Síndrome do Esgotamento Profissional” (Editora LTr). Diretor e Professor da Faculdade CENBRAP. Mantenedor dos sites SaudeOcupacional.org e MedTV. Coordenador do Congresso Brasileiro de Medicina do Trabalho e Perícias Médicas, e do Congresso Brasileiro de Psiquiatria Ocupacional. Diretor Técnico da ASMETRO – Assessoria em Segurança e Medicina do Trabalho Ltda (Goiânia/GO). Colunista da Revista PROTEÇÃO.

Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista Marcos Henrique Mendanha, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.

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