09 jan 2019

“Cidilização” dos conflitos laborais

postado em: Coluna do Lenz

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A saúde além de ser um “direito”, um bem tutelado, acaba também sendo uma boa âncora para sustentar as reivindicações de trabalhadores. Aliás, não bem a “saúde”, mas sim, a “doença”, com o seu respectivo CID. Assim, a mesma reivindicação de um trabalhador pode alcançar diferentes status em função de como se apresenta: se for uma simples queixa, sem doença, pode mesmo nem ser ouvida; mas, se for uma queixa acompanhada de uma doença, parece despertar a atenção do mesmo desatento interlocutor.

A mesma demanda de um professor, solicitando a troca de escola, queixando-se de violência no seu local de trabalho, afirmando que a escola tem excesso de alunos por sala de aula, conflitos frequentes com alunos e pais, poderá gerar diferentes impactos nos gestores responsáveis. Se a solicitação se apresentar apenas na forma de queixas (sem doença, sem CID), o resultado poderá ser um monossilábico “não”, bem circunstanciado por todas as óbvias dificuldades elegantemente asseveradas pelos gestores. Porém, se a mesma solicitação vier recheada com um CID (“cidilização” do conflito), a coisa muda! Em especial, se o CID se encontrar presente na relação CID/CNAE do empregador, ou seja, se for um CID potencialmente gerador de uma doença ocupacional. Aí, as tais “óbvias dificuldades” se esmaecem, provocando uma súbita inquietude nos mesmos gestores, aumentando o interesse pela situação, até com possibilidades de atender tal solicitação, agora nem tão assim descabida.

Na verdade, quando o conflito chega ao SESMT já vem acompanhado de CID (doença) pois, sem o qual, geralmente é resolvido em nível administrativo, muitas vezes até sem conhecimento do SESMT.

A doença sempre se fez presente nos sinistros laborais, desde o acidente do trabalho, a PAIR, as LER-DORT e os Transtornos Mentais Relacionados ao Trabalho, o quais classificamos respectivamente em primeira, segunda, terceira e quarta gerações.

Mas, eis que um sinistro, o assédio moral, (quem sabe uma quinta geração de sinistro laboral) aparece heroicamente, desprovido de qualquer CID e começa a ganhar uma visibilidade importante nos conflitos laborais resultando em generosas indenizações, gerando passivos corporativos dignos de mais atenção e melhor gerenciamento pelos gestores.

Embora o assédio não seja nenhuma novidade, as dúvidas são várias e frequentes, a começar pela mais comum: “se é assédio moral ocorrido no trabalho, registra ou não registra a CAT, junto ao INSS”? Ora, se o dano é apenas moral, não havendo lesão/distúrbio físico ou mental, condições necessárias para a sua caracterização, conforme a lei 8213 que define o acidente do trabalho em seu artigo 19, não há o que falar em acidente do trabalho.

Arriscando uma profecia, seria o assédio moral o prenúncio de uma possível “descidilização” dos conflitos laborais empregado-patrão? O curioso é que o Burn-out, outro sinistro laboral, atualmente também tão em evidência, no próximo CID (CID 11, ainda não vigente) saiu do capítulo “transtornos mentais” e foi inserido em “problemas associados ao emprego e desemprego”, conforme destacado no livro “Desvendando o Burn-out”, excelente trabalho dos colegas Marcos Mendanha, Pablo Bernardes e Pedro Shiozawa.

Caso esteja ocorrendo realmente uma descidilização dos conflitos laborais, algumas perguntas não poderiam escapar, como: seria um retrocesso ou um avanço? Seria a banalização da doença relacionada ao trabalho ou uma supervalorização da qualidade de vida no trabalho? Poderíamos sugerir o Burn-out como sendo um candidato a sinistro de 6ª geração?

As dúvidas podem ainda se multiplicar, tendo em vista que estamos nos acomodando entre os escombros da antiga e ruída CLT e a sua novíssima e ainda controvertida versão atual. Tudo isso pode ainda se tornar ainda mais sombrio, quando consideramos o cenário atual, com a posse de um novo governo caracterizado como liberalista, com promessas de profundas mudanças nas relações de trabalho.

Adendo: agradeço pela criação do verbo “cidilizar” à colega Daisy Mabel, carinhosamente: Dra. Daisípsilon.

Autor: Dr. Lenz Alberto Alves Cabral – Médico do Trabalho, Especialista em Ergonomia pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, Professor convidado da Pós-Graduação em Medicina do Trabalho da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, Diretor da PROERGON – Assessoria e Consultoria em Segurança e Saúde do Trabalhador / Ergonomia, autor dos livro “Abre a CAT?”  e “Limbo Trabalhista” (ambos pela Editora LTr). Contato: www.proergon.com.br

Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.

 

 

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