22 mar 2016

“A regra é clara.” Será?!

Nenhum comentário.

Um ilustre árbitro de futebol um dia afirmou: “a regra é clara”! Mas, será mesmo tão clara assim? Frequentemente nos deparamos com tomadas de decisões onde as dúvidas permanecem, ou às vezes até aumentam após a leitura do texto legal que deveria justamente esclarecer uma determinada situação, devido a vários complicadores, como as contradições (antinomias legais), ou os vazios legais, não cumprindo assim a sua função original. Pior ainda, quando a decisão tem que ser tomada em tempo hábil, podendo o seu protelamento resultar em desdobramentos ainda de maior complexidade. Afinal: “Onde a lei silencia, todos sentenciam”! E, o resultado é: uma sentença para cada interesse!

Um objeto ao ser iluminado por uma fonte de luz pode gerar em um anteparo uma sombra do mesmo tamanho (idêntica), maior ou menor, de acordo com as distâncias do objeto à fonte de luz e, do objeto ao anteparo. Porém, a dimensão do objeto não varia; é sempre a mesma. O que varia é a sua sombra.

Assim como o objeto, a lei também é fixa. Assim como a “sombra”, o que muda de tamanho é a “conclusão”, de acordo como o intérprete e o cenário, gerando conclusões diferentes, sendo do mesmo tamanho, às vezes maiores, às vezes menores do que a lei. Quando a interpretação resulta em uma conclusão do mesmo tamanho que o texto legal, nem mais nem menos, dizemos ser uma interpretação legalista. Quando a interpretação resulta em uma conclusão maior do que o texto legal, dizemos ser uma interpretação supra legalista. Ou ainda, quando a interpretação resulta em uma conclusão menor do que o texto legal, dizemos ser uma interpretação infra legalista.

Tais interpretações ocorrem frequentemente com o médico do trabalho, ao adotar mecanismos que flexibilizam a sua decisão de acordo com o cenário, na tentativa de prontamente resolver o problema, garantindo os diretos e deveres de todos (empregado, empregador e governo).

Na postura legalista, a decisão tomada segue o texto legal “ipsis litteris”, ou seja, as ações decorrentes da aplicação da legislação seguem rigorosamente o seu texto. Nem mais, nem menos. A postura legalista por si, parece ser a mais confortável por razões óbvias, pois seria o mesmo que ler o texto legal e, como um roteiro, um script, segui-lo ao pé da letra. Algo como um “bordão” de um antigo programa de humor: “ordis são ordis”! Ou ainda, ordem dada, é ordem cumprida!

Porém, esta postura pode resultar em várias conclusões equivocadas, como não caracterizar legítimos acidentes do trabalho, enquadrar na cota de deficientes falsos deficientes e, ao contrário, não enquadrar na cota legítimos deficientes, dentre outras incontáveis situações.

Em relação à não caracterização de legítimos acidentes do trabalho por tomar como base exclusivamente o texto legal, esta postura legalista deixa de considerar como acidente do trabalho aqueles sem distúrbio, lesão ou incapacidade, como em alguns acidentes biológicos ou exposição à raiva animal, duas situações excluídas pelo texto “cru” da Lei 8213/91, que define em seu artigo 19 como sendo acidente do trabalho aquele que resultar em “lesão ou distúrbio” e em “incapacidade para o trabalho”, duas situações não existentes nos exemplos de respingar sangue de paciente em mucosa de trabalhador da área de saúde e lambedura por cão de mucosa da boca de trabalhador ambulante ou carteiro, tendo em vista que ambas as situações não resultam em distúrbio, lesão, nem incapacidade, o que levaria a concluir, com base no texto legal, que não se trata de acidente do trabalho. Pior ainda, quase que por ironia, o artigo 20, § 1º desta mesma lei ainda reforça tal disparate ao insistir “que não é considerada como doença do trabalho a que não produza incapacidade laborativa”.

Ou seja, o “cobertor é curto” e não contempla tais situações. Assim, ao considerar tais situações como sendo acidente do trabalho, o que “em nossa opinião é o correto”, o médico do trabalho adota uma postura supra legalista, ou seja, como que esticando o cobertor.

A mesma postura legalista se repete no enquadramento na cota de falsos deficientes e, ao contrário, do não enquadramento na cota de legítimos acidentes do trabalho.

O texto legal do Decreto 5296, como um cobertor muito grande, é muito permissivo na deficiência auditiva, ou seja, enquadrando na cota falsos deficientes e, ao mesmo tempo, como um cobertor muito curto, muito restritivo na deficiência visual ao não enquadrar na cota legítimos deficientes.

Na deficiência auditiva, basta apresentar apenas uma perda bilateral acima de 40 dB em uma frequência de cada lado (“perda parcial”, conforme o texto do decreto: sugiro reler o decreto com muita, muita calma!), e estará o falso deficiente enquadrado na cota. Quem não concordar e o excluir da cota estará adotando uma postura infra legalista, assim encurtando o cobertor. Na deficiência visual é exigido pelo mesmo decreto uma grande limitação da visão sendo, portanto muito restritivo, ao enquadrar como deficientes apenas aqueles que apresentam na melhor visão, após a melhor correção 0,3 ou com campimetria inferior a 60º. Ou seja, para ser enquadrado como deficiente visual o candidato deverá ser “muito deficiente”. E, se alguém não concordar e enquadrar na cota por exemplo um candidato com visão normal de um lado e cegueira total do outro olho (visão monocular), estará como que esticando este curto cobertor, adotando assim uma postura supra legalista.

Como sabemos, tais situações muitas vezes acabaram sendo resolvidas no judiciário, agrupando-se em jurisprudências, súmulas… e, nós, médicos do trabalho, meros espectadores das imagens projetadas, ou melhor, das resoluções tomadas.

Assim, diante de toda dúvida no exercício da medicina do trabalho, analise as possíveis decisões e, em cada uma delas se pergunte: estou sendo legalista, infra ou supra legalista?

Não sei se ajudará em alguma coisa. Pode até ajudar. Mas, pode ser também tão inútil quanto a frase do ilustre árbitro: a regra é clara!

Autor: Dr. Lenz Alberto Alves Cabral (MG) – Médico do Trabalho, Especialista em Ergonomia pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, Professor convidado da Pós-Graduação em Medicina do Trabalho da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, Diretor da PROERGON – Assessoria e Consultoria em Segurança e Saúde do Trabalhador / Ergonomia, autor do livro “Abre a CAT?” (Editora LTr). Contato: www.proergon.com.br

O Dr. Lenz escreve mensalmente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna do Lenz”.

Assine a newsletter
saudeocupacional.org

Receba o conteúdo em primeira mão.