18 maio 2022

É possível realizar perícia médica por Telemedicina, sob o ponto de vista ético-legal? 

postado em: Coluna do Puy

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O tema Telemedicina tem produzido recentes e acalorados debates por todo Brasil, em virtude da nova Resolução do CFM que versa sobre o assunto (Resolução CFM nº 2.314/22), assim como as leis ordinárias federais nº 13.989/20 (Dispõe sobre a Telemedicina em sentido amplo) e Portaria GM/MS nº 913/22 (Declara o encerramento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional – ESPIN) vigentes.

Meu dileto leitor, debateremos aqui neste artigo apenas os aspectos ético-legais sobre o assunto. Ressalto esta informação pois o debate técnico sobre a exequibilidade (ou não) de ser realizar perícia médica por Telemedicina é extremamente complexo e transcende esta publicação.

O art. 3º da Lei nº 13.989/20 conceitua a Telemedicina e sua aplicabilidade:

“Art. 3º Entende-se por telemedicina, entre outros, o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde.”

Desde já destacamos que não há previsão legal para emprego da Telemedicina na perícia médica, pautado exclusivamente na interpretação deste excerto legal.

A referida lei também delega competência secundária ao CFM para regulamentar a Telemedicina, in verbis:

“Art. 6º Competirá ao Conselho Federal de Medicina a regulamentação da telemedicina após o período consignado no art. 2º desta Lei.”

Ao visitarmos a nova Resolução do CFM sobre a Telemedicina, observamos que em seu art. 1º há a definição do escopo para a atuação médica, in verbis:

“Resolução CFM nº 2.314/22 – Define e regulamenta a telemedicina, como forma de serviços médicos mediados por tecnologias de comunicação.

Art. 1º Definir a telemedicina como o exercício da medicina mediado por Tecnologias Digitais, de Informação e de Comunicação (TDICs), para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões, gestão e promoção de saúde.”

Portanto, fica claro que nas sete (07) modalidades de exercício profissional médico por Telemedicina (Teleconsulta, Teleinterconsulta, Telediagnóstico, Telecirurgia, Telemonitoramento ou televigilância, Teletriagem e Teleconsultoria) nenhuma delas prevê a finalidade pericial.

Neste sentido, o que se vê é um vácuo normativo ou uma lacuna jurídica quando o assunto é a seara pericial.

Salientamos ainda que a mesma Resolução revoga todas as disposições anteriores em contrário, conforme art. 21, in verbis:

“Art. 21. Fica revogada a Resolução CFM nº 1.643/2002, publicada no DOU de 26 de agosto de 2002, Seção I, pg. 205 e todas as disposições em contrário.”

Ora, se não há qualquer previsão acerca da aplicabilidade da Telemedicina para fins periciais, seja para seu uso, seja pela sua inaplicabilidade, existiria revogação de qualquer disposição em contrário?

Por óbvio que diante de uma lacuna normativa desta Resolução, não há em que se falar de revogação de qualquer dispositivo pretérito que verse sobre a Telemedicina em perícias, seja pela aplicabilidade ou não.

Tal postura do CFM é compreensível, ponderada e sensata neste momento, no sentido de não proibir e, por outro lado, não liberar expressamente.

Por quê?

A meu ver (interpretação meramente pessoal sobre o assunto), o CFM e os CRM’s vêm analisando detidamente esta situação há anos (senão décadas) e analisando a “Teleperícia” (termo em aspas, pois não existe tal conceito do ponto de vista ético-disciplinar) paulatinamente em diversas consultas.

Quando instadas a se pronunciarem, as autarquias apresentam a possibilidade jurídica favorável quanto à eticidade de se realizar “Teleperícia” em diversas situações periciais, sob a forma de Pareceres.

Inicialmente, ressalto que o Parecer jamais possuirá força normativa de Resolução.

A Resolução possui poder coercitivo, define conceitos, estabelece regras e vedações.

O Parecer possui caráter opinativo, apresenta solução de atuação do profissional de como proceder eticamente, nos limites da consulta realizada.

Portanto, um Parecer favorável à determinada prática define entendimento da autarquia acerca de um tema.

Não significa que seja a única saída de atuação do médico no caso concreto, mas traz alguma segurança jurídica, considerando que a Administração Pública não pode ter comportamentos contraditórios (Princípio do “Venire factum proprium”). Vale dizer, se eu faço uma consulta ao CFM/CRM local e o mesmo expede um Parecer aprovado em Plenária, não posso enquanto médico ser punido eticamente, em virtude de atuar no estrito limite profissional estabelecido por este normativo.

Ao aprofundarmos consultas no CFM/CRM’s acerca da “Teleperícia”, observamos que as autarquias têm autorizado tal modalidade de atuação médica o que sedimenta a situação jurídica atual que avalio logo a seguir.

Em que pese o vácuo legal da “Teleperícia” na Resolução CFM nº 2.314/22 (e da lei federal nº 13989/20), se constata TOLERÂNCIA da autarquia em se realizar perícia médica à distância, em face dos médicos.

Neste sentido, o CFM/CRM’s entendem que do ponto de vista administrativo, não estaria o médico que faz “Teleperícia” atuando de forma antiética conforme os ditames do Código de Ética Médica (CEM) ao longo da década anterior e atual.

Senão vejamos:

I – Conselho Federal de Medicina (CFM):

Parecer CFM nº 09/12:

EMENTA: É ética e legal a realização de videoconferência em perícias médicas administrativas, nos limites circunstanciais desta consulta, garantindo-se ao periciando o exame presencial caso o requeira.”, o consulente foi o Ministério Público Federal – Secretaria de Serviços Integrados de Saúde.

À título de esclarecimento, a consulta envolvia “a realização de perícia médica administrativa em que um ou mais membros da Junta Médica Oficial (JMO) realize(m) a avaliação pericial por meio de videoconferência”.

Aduzia o “Ministério Público Federal tem unidades administrativas em todas as capitais da Federação e em vários municípios brasileiros, sendo seu quadro funcional regido pela Lei nº 8.112 – Regime Jurídico Único e Lei Complementar nº 75 para os membros do MPF”.

Ademais, “Considerando que em toda videoconferência para fim pericial há sempre, pelo menos, um médico perito em contato direto com o periciando (no mesmo recinto);

Considerando que, caso persista a dúvida entre os membros da JMO por videoconferência, o servidor poderá ser levado para uma sede em que seja avaliado presencialmente por todos os membros da JMO ou estes poderão deslocar-se até a presença do servidor;”

Vemos neste caso um exemplo de Parecer favorável quanto à junta médica oficial em serviço público no qual há um dos médicos peritos em contato direto com o periciado.

II – Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG):

Parecer CRM- MG nº 125/2021:

Ementa: Perícias médicas especializadas psiquiátricas de natureza judicial devem ter seus exames clínicos executados de forma presencial, podendo ser realizados, de forma excepcional, a distância.

Diferentemente do Parecer anterior (“Teleperícia” administrativa pública), o presente Parecer envolve o escopo de “Teleperícias” médicas judiciais que versem sobre a temática Psiquiatria.

Vale a pena trazer excerto da lavra do Ilustre Conselheiro do CRM-MG, Dr. Paulo Roberto Repsold:

“Em relação ao solicitado questionamento relativo às perícias médicas especializadas psiquiátricas de natureza judicial, especificamente em relação quando seus respectivos exames médicos clínicos periciais se realizarem de forma não presencial, a distância (“Forma Virtual On-line, sem a presença física do periciando”), com suas consequentes implicações, tais como eficácia, riscos, consequências, etc., pode-se observar que é lícito, por decisão judicial, a realização e tais exames na forma não presencial, a distância, por meio eletrônico virtual, contudo, fazendo-se necessária a realização de tais exames com a presença física do periciando, dever-se-á informar e requisitar ao Juízo designante da perícia médica judicial a imperiosa necessidade da presença física do periciando, justificando-se tal demanda com fins de se poder chegar a uma conclusão pericial com maior eficiência e correção, mais elucidativa.

Evidentemente tal demanda trará maior clareza e segurança para o Juízo e sua posterior decisão judicial, que será devidamente bem fundamentada, em sólidas bases científicas de uma robusta prova técnica, e que esta foi realizada da melhor e mais eficaz forma possível.

Finalizando, nas perícias médicas especializadas psiquiátricas de natureza judicial, recomenda-se a realização dos respectivos exames médicos clínicos periciais com a presença física do periciando, com fins de se chegar a uma conclusão mais elucidativa e segura. Contudo, não é absolutamente vedada a realização de tais exames na forma não presencial, a distância, por meio eletrônico virtual.”

A supracitada e destacada decisão judicial envolve a ação judicial nº 5039701-70.2020.4.04.7100 no qual o CFM sucumbiu ao Ministério Público Federal (MPF), sendo declarado NULO o Parecer do CFM nº 10/2020, in verbis:

“EMENTA: Em ações judiciais em que sejam objetos de apreciação pericial, a avaliação de capacidade, dano físico ou mental, nexo causal, definição de diagnóstico ou prognóstico, é vedado ao médico a realização da perícia sem exame direto do periciando ou sua substituição por prova técnica simplificada.”

Ou seja, do ponto de vista ético-legal, o perito médico indicado pelo juízo que realize “Teleperícia” não poderia ser condenado eticamente no CFM/CRM por realizar perícia remotamente!

Duas considerações devem ser feitas.

A primeira é o que já apresentei alhures: Parecer do CFM não tem caráter coercitivo, não tem o poder de criar ou estabelecer infração ética.

Neste sentido, este normativo estaria de fato natimorto por inadequação legal. Ou seja, o CFM teria que regulamentar o tema por meio de Resolução, caso desejasse criar uma expressa vedação aos médicos.

Segunda observação: ainda sob o ponto de vista legal temos que no Brasil vigora o Princípio da reserva legal (art. 5º, inciso II, CF/88):

“Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”

Assim, o princípio da legalidade garante que somente as leis podem criar obrigações às pessoas, ou seja, o Estado só pode exigir que você faça ou deixe de fazer algo se essa exigência estiver escrita em uma lei.

De fato, a Lei 13.105/15 que normatiza o novo Código de Processo Civil em nada delimita a forma de atuação pericial do juízo, seja presencial ou remota/virtual, conforme os artigos 464, caput, e 471, § 1º, in verbis:

“Art. 464. A prova pericial consiste em exame, vistoria ou avaliação.

Art. 471. As partes podem, de comum acordo, escolher o perito, indicando-o mediante requerimento, desde que: (…)

§ 1º As partes, ao escolher o perito, já devem indicar os respectivos assistentes técnicos para acompanhar a realização da perícia, que se realizará em data e local previamente anunciados.”

Finalmente, vemos segundo Parecer que acena para a possibilidade da “Teleperícia”, agora na seara judicial.

III – Conselho Regional de Medicina do Mato Grosso (CRM-MT):

1- Parecer CRM-MT Nº 26/2016

Ementa: Pedido de parecer quanto a possibilidade de realização de Pericia “On-Line”.

A consulta envolvia a realização de junta médica administrativa “on line” do segurado em plano de saúde com o escopo de autorização de procedimentos, prevista pelo CRM e pela ANS, em caso de divergência de opinião.

A consulta fazia fundamentação pautada da Resolução CONSU n° 8, de 03/11/98, art. 4º, in verbis:

“Art. 4°.As operadoras de planos ou seguros privados de assistência à saúde, quando da utilização de mecanismos de regulação, deverão atender às seguintes exigências: garantir, no caso de situações de divergências médica ou odontológica a respeito de autorização prévia, a definição do impasse através de junta constituída pelo profissional solicitante ou nomeado pelo usuário, por médico da operadora e por um terceiro, escolhido de comum acordo pelos dois profissionais acima nomeados, cuja remuneração ficará a cargo da operadora;”

Conclui o Parecer que ao “ser aplicado a resolução CONSU nº 8 artigo 4 inciso V, entende-se que não se faz necessário de junta MÉDICA presencial, desde que todas as partes fundamentem as suas decisões, que o médico assistente justifique clinicamente sua indicação, o médico indicado pela operadora justifique a sua decisão de não autorizar o material solicitado e o médico especialista indicado pelos dois acima faça a arbitragem da divergência.”

Neste norte, fica claro também que o CRM também sinaliza a viabilidade de junta médica administrativa remota com o escopo de autorização de procedimentos em planos ou seguros privados de assistência à saúde.

2- Parecer CRM- MT nº 13/2011

Ementa: Orientação sobre problemas enfrentados em junta médica federal

A consulta questionava “Quanto a possibilidade de fazer-se a entrevista dos periciandos através de vídeo-conferência, tendo as seguintes precauções:

a. O periciando ficaria numa sala sozinho, frente a webcam;

b. Teria enviado anteriormente os exames complementares, o laudo do médico assistente e o diagnóstico, o prognóstico, o tratamento e o tempo recomendado de afastamento, bem como o exame físico sumário e objetivo realizado no periciando;

c. A junta, em hora, dia e local pré-estabelecido, ouviria o interessado, analisaria a documentação emitia e faria seu documento homologatório;”

O Parecerista deixa claro que existiria a possibilidade de se realizar junta médica por “Telemedicina” caso um dos médicos peritos estivesse presencialmente com o periciado:

“Apesar de compreender as dificuldades enfrentadas pela distância, custos e mudança da legislação em relação à necessidade de perícia para homologação de atestado médico até para um dia de afastamento, devemos ressaltar que a junta médica é um ato médico e que como tal alguns questionamentos devem ser feitos, por exemplo, como realizar um exame médico em um periciando sem a presença do mesmo em sala?; como seria discutido a simulação sem examinar o periciando? Como os médicos que compõe a junta podem assumir responsabilidade sem ter realizado exame presencial em seu periciando? As resoluções que utilizam a tele medicina como recurso recomendam a troca de informações entre profissionais médicos, onde em um local existe um profissional médico que troca informações com outro em local distinto.

Portanto, talvez esse fato só poderia ser colocado em discussão se houvesse presença de um médico no local onde o periciando estivesse, pois em caso de dúvidas no exame existe um profissional médico que pode trocar informações com os profissionais médicos da junta. “

Ora, mais uma vez temos a autarquia federal ratificando viabilidade ética de se realizar “Teleperícia” administrativa em serviço público federal.

A leitura que faço de todo este cenário real que se impõe no CFM/CRM é que a “Teleperícia” ainda não foi de fato normatizada muito em virtude da “curva de aprendizado” que vem sendo adquirida ao longo do tempo. As experiências positivas e negativas sobre a temática tem sido alvo de estudos nestas autarquias e abusos vêm sendo coibidos ao longo do tempo.

Prudência e cautela são sempre bem vindos, especialmente quando envolve a vida e a saúde das pessoas.

Talvez em breve teremos respostas do CFM positivadas em Resolução sobre a aplicabilidade da Telemedicina em perícias, definindo estes contornos.

Um forte abraço a todos!

Rodrigo De Puy é médico do trabalho e advogado especialista em Direito Médico.

Contatos: www.rodrigodepuy.com.br ; e-mail contato@rodrigodepuy.com.br

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