05 fev 2020

Não aplicação da CLT nas ações de indenização por dano corporal derivadas da responsabilidade civil do empregador

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A Constituição Federal, art. 7º, inciso XXVIII, estabelece a responsabilidade civil do empregador, ao determinar ser direito do trabalhador, “seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa”. O direito do trabalhador e o dever de fazer do empregador foram balizados pelo inciso XXII do mesmo artigo: “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”.

A reparação integral dos danos é a tônica. A legislação brasileira não limita a indenização do lesado à redução da capacidade laboral.

O aumento do número de ações indenizatórias na justiça comum impôs aos operadores do direito a busca de conhecimentos na área de Medicina do Trabalho posto ser esta a fonte do direito de um e do dever de fazer do outro. Outros aspectos, tais como a distribuição dinâmica do ônus da prova, o sistema pericial, critérios de nexo e reparação integral do dano já faziam parte do arcabouço jurídico definidos no Código Civil e no Código de Processo Civil, fontes únicas destas indenizações.

O Código de Defesa do Consumidor, Lei 8078/90, ao ampliar as situações de inversão do ônus da prova, possibilitou a implementação de merecida proteção ao trabalhador dada a conhecida dificuldade deste em comprovar o nexo e culpa do empregador. As obrigações legais impostas ao empregador pelas NRs, por outro lado, o favorecem para cumprir esta tarefa.

A presunção legal de direito, artigo 334, inciso IV do CPC/73 e artigo 374, inciso IV do CPC/2015, foi frequentemente utilizada na justiça comum convergindo igualmente para a inversão do ônus da prova.

A presunção legal de direito com consequente inversão do ônus da prova foi introduzida na legislação previdenciária em 2006 pela Lei nº 11.430.

O sistema pericial, por sua vez, baseia-se nas definições do código civil sobre o exercício profissional autônomo, no reconhecimento do valor social do trabalho e na importância social das verbas alimentares. Existe conhecimento prévio do valor dos honorários e da sua quitação após a realização da perícia. Isso garante haver peritos qualificados em número suficiente para atender a demanda da justiça comum, o que tem impacto positivo na qualidade da prestação jurisdicional. A distribuição eficaz do ônus da prova faz com que as partes assumam o custo desta despesa processual. Em troca recebem perícias qualificadas, independentes e imparciais.

Em 2005, o Supremo Tribunal Federal, definiu ser competência da Justiça do Trabalho julgar estes pleitos. Tal decisão, entretanto, não mudou as bases legais desta indenização que continua sendo definida pela CF e regrada pelo

CC e CPC. A CLT não trata das indenizações do dano corporal oriundos da relação de emprego e menos ainda das perícias médicas envolvidas nestas lides.

A manutenção do arcabouço jurídico no qual se baseiam as indenizações por responsabilidade civil, originadas ou não na relação de emprego, impôs os operadores do direito do trabalho a busca de conhecimentos em Medicina do Trabalho, Perícia Médica, reparação integral de danos, critérios de nexo causal jurídico e nexo causal etiopatológico, distribuição dinâmica do ônus da prova e sistema pericial da justiça comum.

Este hercúleo esforço está sendo absorvido. Entretanto, provavelmente diante da gigantesca tarefa a ser imediatamente cumprida, a meu ver, houve indevida aplicação de dispositivos da CLT nestas ações indenizatórias.

O ônus da prova deixou de ser dinâmico e passou a ser tratado através da aplicação do artigo 818 da CLT, na época assim redigido: “A prova das alegações incumbe à parte que as fizer”. O trabalhador perdeu proteções que gozava na justiça comum como a inversão do ônus da prova e a presunção legal de direito. Este artigo, criado na redação original da CLT, por certo não se refere às indenizações por responsabilidade civil do empregador. Forçoso é admitir que sua aplicação se contrapõe ao Princípio da Proteção, fundamental no direito do trabalho. Mesmo com a alteração no artigo 818 da CLT promovida pela chamada reforma trabalhista de 2017, na prática, os procedimentos processuais não mudaram.

O sistema pericial trabalhista é fruto de dispositivo da CLT que obriga a realização de perícias para definir insalubridade implantado em 1968. Além de não se referir e, portanto, não se aplicar às perícias médicas, o modelo trabalhista gera profundas distorções, já discutidas em outro texto (1). Este anacrônico modelo ainda impera apesar dos esforços de muitos magistrados.

Este proceder faz com que não haja médicos peritos, em número e qualificação suficientes para atender a demanda. Criou condições para o surgimento da chamada “indústria da concausa” que, à semelhança da “indústria da insalubridade”, impacta negativamente a prestação jurisdicional trabalhista. Não são poucas as críticas afirmando que a “indústria da concausa” gera um número demasiado de condenações ao mesmo tempo que reduz substancialmente o valor das indenizações.

No diapasão dos prejuízos temos que os procedimentos periciais trabalhistas foram citados como fomentadores dos lamentáveis fatos desvendados pela operação hipócritas (2).

Ao impor o sistema das perícias de insalubridade, de natureza trabalhista, às perícias médicas, próprias das indenizações por responsabilidade civil, os Tribunais Trabalhistas assumiram o significativo custo desta despesa processual o que gera efeitos não menos nefastos.

A aplicação de dispositivos trabalhistas não relacionados com as indenizações por danos corporais baseados na responsabilidade civil do empregador faz com que o país viva a inusitada situação: o mesmo dano, o mesmo direito lesado e o mesmo dever de reparação, criados por legislação única, são tratados de formas diferentes com resultados diferentes na dependência do tribunal julgador do pleito.

Reavaliar estes procedimentos é tão necessário quanto possível.

(1) Sistema pericial trabalhista: distorções e alternativa, Revista Trabalhista Direito e Processo, Ano 18 – N. 61, pg. 280-299, LTr.

(2) http://www.mpf.mp.br/sp/sala-de-imprensa/noticias-sp/operacao-hipocritas-mpf-revela-fraudes-em-pericias-medicas-em-campinas-e-sao-paulo

Autor: Dr. Marcos Alvarez – Médico, formado na FAMERP em 1984, cirurgião geral via residência médica, Médico Endoscopista (SOBED/AMB), Médico do Trabalho (ANAMT/AMB), especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas (ABMLPM/AMB). É Pós-Graduado em Ergonomia. Possui experiência na área pericial de mais de 20 anos de atuação.

Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do autor, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.

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