29 mar 2018

Requisitos para qualificação do crime de exercício ilegal da medicina

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No último mês de fevereiro, o STF (Supremo Tribunal Federal) manteve a decisão do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região que, em um dos processos sobre o tema, proibiu que a acupuntura fosse praticada por profissional fisioterapeuta. O relator da matéria foi o ministro Gilmar Mendes, que negou seguimento ao recurso extraordinário contra a decisão do tribunal de origem. Clique aqui para ler a íntegra da decisão do STF. Vale lembrar que outros processos sobre a mesma matéria correm em distintos tribunais, e com decisões conflitantes.

Recentemente, também por via judicial, o CFM obteve a “nulidade de artigos de resolução do Conselho Federal de Educação Física (CONFEF), os quais autorizavam aos profissionais desta área a prática de acupuntura”. E também “a suspensão, pela justiça, de trechos de resoluções do Conselho Federal de Farmácia (CFF) que permitiam ‘a consulta farmacêutica em consultório farmacêutico’ e da ‘avaliação de resultados de exames clínico-laboratoriais do paciente’ por estes profissionais”. (Fonte: CFM)

Em dezembro de 2017, a Justiça Federal do Rio Grande do Norte, por via liminar, não proibiu, mas limitou as possibilidades de uso da Toxina Botulínica por parte dos Odontólogos por inobservância da Resolução CFO n. 176/2016 à Lei do Ato Médico. Veja aqui a decisão.

Uma pergunta inquietante surge com as análises acima: nos casos narrados, houve exercício ilegal da medicina? Se a resposta for sim, as implicações deveriam ser bem mais extensas.

Exercício ilegal da medicina é crime, tipificado no art. 282 do Código Penal (CP), punível com detenção de até dois anos por quem o pratica, além de multa.

Se houve crime cometido por todos os profissionais atingidos pelas decisões acima, ato lógico e contínuo, seria a propositura de ação penal para todos que praticaram esse crime, e prisões em flagrante para os que ainda o continuam praticando. Mas não é isso que vemos. Por que? Por vários aspectos que passamos a expor.

Exercer ilegalmente a medicina não significa praticar qualquer ato isolado que corresponde à atividade de médico. O tipo penal exige a prática reiterada e continuada de atos privativos dos médicos (RT 524/404). Consuma-se, pois, o crime quando a série de atos é suficiente para constituir a ação habitual.

Exclui, no entanto, o crime o estado de necessidade, como ocorre nas situações de urgência ou falta de profissionais, algo comum no País, principalmente no seu interior (RT 547/366). Por falta de razoabilidade, por certo que não é crime a conduta de pai ou mãe que tratam dos filhos em casos de pouca gravidade.

Exige-se, outrossim, como elemento subjetivo do crime o dolo genérico, que consiste na vontade consciente dirigida ao exercício da profissão de médico, sabendo o agente que lhe falta a autorização legal. Normalmente, a prisão em flagrante pelo crime de exercício ilegal da medicina ocorre quando o sujeito não é médico mas age, se passa e assina como médico. Comumente, as prisões deflagradas por exercício ilegal da medicina são acompanhadas pelo crime de falsidade ideológica (art. 299 do CP), uso de documento falso (art. 304, CP), falsa identidade (art. 307 do CP), entre outras tipificações possíveis. Não havendo esse “combo”, muitas situações tornam-se discutíveis e, a maioria delas, sequer são qualificadas como criminosas.

O exercício ilegal da medicina é um crime de perigo presumido ou abstrato, onde a saúde pública é colocada em perigo. Não se discute a questão da concorrência abusiva, mas a questão da saúde pública. Consuma-se, desta forma, independentemente de qualquer propósito de causar dano ou de assumir o risco de produzi-lo, bem como de qualquer evento lesivo.

Qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo do crime. O sujeito passivo do crime é o Estado ou a coletividade de pessoas atingidas indistintamente.

É possível a existência de coautoria e participação de terceiros no crime do exercício ilegal da medicina (RT 351/383), na forma do artigo 29 do Código Penal.

Constitui exercício ilegal da medicina a conduta do agente que se apresenta como ortopedista ou traumatologista, não sendo médico (RT 446/485). Também se decidiu que comete o crime quem mantém laboratório de análises clínicas, atividade exclusiva de médico (RT 248/379). Ainda se decidiu pela configuração do crime de exercício ilegal da medicina no caso de agente que exercia a profissão de parteira sem possuir o certificado que é referenciado no artigo 2º, IV, da Lei nº 2.604, de 17 de setembro de 1955, e sem estar inscrita como prática nos termos do inciso VI do mesmo diploma legal (RT 282/539, 376/329, dentre outros). Responde também por exercício ilegal da medicina quem, sem ser médico, mantém clínica médico-pscicanalítica para cuidar do estado de saúde mental daqueles que o procuram (JTACrSP 27/273).

Porém, já se decidiu que não pode ser punido o farmacêutico que, fazendo o atendimento da clientela, fornece remédios a doentes, sem cobrar nada além do preço deles (RF 231/328).

De tantos jugados, com diferentes termos, deduz-se que o Direito não é o que está na lei e nem nas obras dos jurisconsultos, porém, como bem disse o grande jurista e magistrado norte-americano Holmes, “Direito é  o que é declarado pelo juiz”.

Nos casos narrados no início desta matéria, as ações judiciais atacaram resoluções de conselhos profissionais não médicos, que extrapolaram suas competências ao permitirem que os respectivos profissionais realizassem atividades que foram consideradas privativas dos médicos (*algumas decisões ainda são passivas de mudança).

Talvez, ainda que em todas as ações vença a tese dos médicos, não se postulará a penalização penal pretérita dos profissionais não médicos que agiram com o respaldo das respectivas resoluções, pois isso afrontaria os Princípios da Razoabilidade e Proporcionalidade.

É simples imaginar a péssima repercussão social que haveria contra o Judiciário, por exemplo, se os fisioterapeutas e odontólogos que praticaram acupuntura e aplicaram “botox” por tanto tempo, respectivamente, conforme permissão dada pelos seus respectivos conselhos profissionais (autarquias legalmente constituídas), fossem agora penalizados criminalmente, com possibilidade carcerária nos termos do art. 282 do Código Penal. Até para o senso comum, isso não seria razoável e uma eventual prisão seria uma medida desproporcional.

De igual forma é imaginar que profissionais não médicos que atuam nas chamadas “perícias médicas” venham a ser presos algum dia pelo crime de exercício ilegal da medicina, sobretudo, quando alguns deles são nomeados como peritos pelos próprios magistrados (que seriam então os mandantes do hipotético crime). Não há nenhuma razoabilidade nisso.

Aliás, falando do tempo presente, convenhamos: não seria difícil verificarmos a ocorrência deste “crime” (profissional não médico atuando em perícia médica) em flagrante, já que as perícias ocorrem em dia e hora marcados. Por que não se realiza a prisão em flagrante pelo cometimento desse “crime”? Pela falta de razoabilidade em considerar tal ato como criminoso. Até o denunciante fica inseguro e sem jeito de chegar na polícia com essa queixa: prova maior da falta de razoabilidade e que justifica a exclusão do fato como crime.

“A razoabilidade é um conceito jurídico indeterminado, elástico e variável no tempo e no espaço. Consiste em agir com bom senso, prudência, moderação, tomar atitudes adequadas e coerentes, levando-se em conta a relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade a ser alcançada, bem como as circunstâncias que envolvem a pratica do ato”. (RESENDE, 2009)

A razoabilidade é um elemento essencial de caracterização do Estado Democrático de Direito, pois, havendo fundamentação razoável dos atos administrativos, haverá limitação do autoritarismo. Conforme os ensinamentos de Nagib Slaibi Filho: “Ainda que haja a motivação, pode e deve o juiz apreciar a razoabilidade do ato, pois a lógica do direito é a lógica do razoável”.

Na realidade o princípio da razoabilidade exige proporcionalidade entre os meios de que se utiliza a administração e os fins que ela tem que alcançar. E essa proporcionalidade deve ser medida, não pelos critérios pessoais do administrado, mas segundo padrões comuns na sociedade em que vive e não pode ser medida diante dos termos frios das leis mas diante do caso concreto. Como assinala Celso Antônio Bandeira de Mello: “A administração pública não deve atuar jamais servindo-se de meios mais enérgicos que os necessários à obtenção dos resultados pretendidos pela lei, sob pena de vício jurídico, que acarretará responsabilidade da administração”.

De acordo com o Princípio da Proporcionalidade dos meios aos fins, o poder de polícia não deve ir além do necessário para a satisfação do interesse público que visa proteção. Sua finalidade não é destruir os direitos individuais, mas, ao contrário, assegurar o seu exercício, condicionando-o ao bem-estar social.

Assim, a proporcionalidade entre a restrição imposta pela administração e o benefício social que se tem em vista constitui requisito específico para a validade do ato de polícia, como também a correspondência entre a infração cometida e a sanção aplicada, quando se tratar de medida punitiva. Sacrificar um direito ou uma liberdade do indivíduo sem vantagem para a coletividade invalida o fundamento social do ato de polícia, pela desproporcionalidade da medida.

A desproporcionalidade do ato de polícia ou seu excesso equivale a abuso de poder e, como tal, tipifica ilegalidade nulificadora da sanção. Por isso mesmo, os meios diretos de coação só devem ser utilizados quando não haja outro meio eficaz para se alcançar o mesmo objetivo, não sendo válidos quando desproporcionais ou excessivos em relação ao interesse tutelado pela lei.

REFERÊNCIAS

O Princípio da Razoabilidade no Direito Administrativo

Do Princípio da Proibição do Excesso

Dos crimes de exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica, charlatanismo e curandeirismo

Autor: Marcos Henrique Mendanha: Médico do Trabalho, Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas. Advogado especialista em Direito e Processo do Trabalho. Perito Judicial / Assistente Técnico junto ao TRT-GO e TRF-GO. Diretor Técnico da ASMETRO – Assessoria em Segurança e Medicina do Trabalho Ltda. Autor do livro “Medicina do Trabalho e Perícias Médicas – Aspectos Práticos e Polêmicos” (Editora LTr). Coordenador do Congresso Brasileiro de Medicina do Trabalho e Perícias Médicas, e da Jornada Brasileira de Psiquiatria Ocupacional. Coordenador do CENBRAP – Centro Brasileiro de Pós-Graduações. Colunista da Revista PROTEÇÃO.

Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista Marcos Henrique Mendanha, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.

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