08 fev 2018

Não existe sigilo médico em perícia médica?

postado em: Coluna do Opitz

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Sempre me fazem esta pergunta e uma decisão recente da Justiça Federal traz este tema novamente a discussão: existe ou não sigilo médico em Pericia Médica?

Por óbvio a pericia médica não pode ser como um todo sigilosa, uma vez que seu objeto é justamente o esclarecimento de fatos médicos a leigos na matéria médica, que muitas vezes não estão submetidos ao chamado sigilo médico.

Contudo, será que não existe sigilo algum ou algumas informações do periciando merecem a proteção do sigilo médico?

Recente decisão da 4 Turma do TRF-4 declarou ilegal o art. 4 da Resolução CFM 1605/2000 e o parágrafo primeiro do art. 89 da Resolução CFM 1931/2009, por entender que estes dispositivos limitam a atuação do juiz no âmbito processual. Vejamos o que dizem estes artigos:

Resolução CFM 1605/00
Art. 4o – Se na instrução de processo criminal for requisitada, por autoridade judiciária competente, a apresentação do conteúdo do prontuário ou da ficha médica, o médico disponibilizará os documentos ao perito nomeado pelo juiz, para que neles seja realizada perícia restrita aos fatos em questionamento.

Resolução CFM 1931/09
Art. 89. Liberar cópias do prontuário sob sua guarda, salvo quando autorizado, por escrito, pelo paciente, para atender ordem judicial ou para a sua própria defesa.
§ 1º Quando requisitado judicialmente o prontuário será disponibilizado ao perito médico nomeado pelo juiz.
§ 2º Quando o prontuário for apresentado em sua própria defesa, o médico deverá solicitar que seja observado o sigilo profissional.

Os dois dispositivos declarados ilegais orientam os médicos a entregarem os prontuários médicos, quando requisitados judicialmente, ao perito médico nomeado pelo Juiz.

E por que este cuidado de não juntar o prontuário médico na íntegra no processo, mas apenas entregá-lo ao perito judicial?

Esta recomendação do CFM aos médicos vai de encontro ao que defendemos sobre o Sigilo Médico em Perícia Médica, inclusive em nosso livro com este título publicado no ano passado: só deve existir quebra do sigilo médico do periciando em relação a informações médicas que interessam ao esclarecimento dos fatos médicos controversos, não havendo motivo plausível para que todo o histórico médico do individuo seja revelado.

É esta a intenção do Conselho Federal de Medicina, proteger de divulgação fatos médicos que não tenham interesse processual, por isso os prontuários médicos seriam entregues aos peritos médicos.

De posse deste documento, o profissional médico nomeado pelo Juiz poderia trazer aos Autos apenas aquelas informações médicas relacionadas ao objeto da ação e da pericia médica, protegendo informações irrelevantes ao caso sob judice.

Pois é justamente esta análise e está proteção que está sendo considerada ilegal!

Entendo que a divulgação de todos os dados médicos, indistintamente, poderá prejudicar a parte envolvida na ação.

Esta violação da intimidade e da vida privada do individuo poderá, inclusive, inibir que algumas pessoas procurem o Judiciário em busca da tutela jurisdicional.

Imaginemos um caso hipotético de um individuo que sofreu um acidente de trabalho típico, uma amputação de um membro, e é portador do vírus HIV.

Será que o fato de ele ser portador de HIV possui interesse processual para o deslinde da ação trabalhista de indenização por acidente de trabalho típico?

Será que este indivíduo pensará duas vezes antes de entrar com a ação, uma vez que tem a certeza todos saberão que o mesmo é portador de HIV, inclusive funcionários da empresa envolvidos na ação?

E se ele ainda estiver trabalhando quando entrar com a ação, agora todos os colaboradores da empresa saberão que ele é portador de HIV, informação que ele confidenciou apenas ao seu médico?

Se o fato de ele ser portador do vírus HIV interferir de alguma forma na doença que está sendo discutida no processo ou for o objeto da ação, entendo que este fato deve ser revelado no processo.

Agora, se esta informação não é relevante para o esclarecimento dos fatos, por qual motivo isto deve se tornar público?

São estas perguntas que devemos nos fazer quando invadimos a intimidade e a vida privada dos indivíduos sem nenhuma restrição, expondo, muitas vezes, segredos íntimos e pessoais que só são revelados aos médicos.

Cabe aqui lembrar que o detentor do sigilo é sempre o paciente, que pode abrir mão do mesmo e tudo ser revelado.

Mas é preciso garantir este direito a ele, de optar que informações sem qualquer interesse processual continuem sob a proteção do sigilo médico.

Ao tomar esta decisão, com a devida vênia, o TRF-4 indicou que os prontuários médicos devem ser juntados nos processos na íntegra quando requisitos judicialmente, violando, assim, direitos e garantias individuais.

Isto implica em informações sem qualquer relevância processual tornando-se públicas.

Quanto a pergunta proposta: não existe sigilo médico em perícia médica?

A informação tem interesse processual? Deve ser revelada.

Não há interesse processual? Não é razoável que a intimidade e a vida privada do periciando seja invadida.

Infelizmente, estas questões não estão sendo analisadas na recente decisão do TRF-4.

Entendo que direitos e garantias fundamentais estão sendo violadas e espero que esta decisão seja revista.

Cabe a reflexão: a Justiça deve ser realizada a qualquer preço?

O poder do Estado deve ser ilimitado?

“Onde quer que haja um direito individual violado, há de haver um recurso judicial para a debelação da injustiça; este, o princípio fundamental de todas as Constituições livres.” (Rui Barbosa)

Autor: Dr. João Baptista Opitz Neto – Médico do Trabalho, Mestre em Bioética e Biodireito pela UMSA/AR; Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas; Especialista em Ergonomia; Perito Judicial / Assistente Técnico nas áreas trabalhista, cível e previdenciária. Autor do livro “Perícia Médica no Direito” (Editora Rideel); Colunista do portal SaudeOcupacional.org; Professor e Palestrante nas área de Pericia Médica, Medicina do Trabalho e Meio Ambiente do Trabalho; Diretor do Instituto Paulista de Higiene, Medicina Forense e do Trabalho.

O Dr. João Baptista Opitz Neto escreve periodicamente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna do Opitz”.

Obs.: o texto acima é de autoria do colunista João Baptista Opitz Neto, e não reflete a opinião institucional do SaudeOcupacional.org.

 

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