21 mar 2023

Perícia São Tomé: procedimento leigo e pseudocientífico

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[Tempo estimado de leitura: 5 minutos]

Alguns operadores de direito se sentiram à vontade para prescrever que o médico perito é obrigado a “visitar” o posto de trabalho em todas as análises de nexo causal entre doença alegada e trabalho realizadas no âmbito da Justiça do Trabalho. Basta a alegação de nexo para estabelecer a obrigatoriedade: é a perícia São Tomé.

A perícia São Tomé tem as seguintes características principais: (1) o médico perito é obrigado a realizar perícia no local de trabalho, chamada frequentemente de “visita” – termo que de certa forma reflete sua precariedade-, em todas as perícias médicas realizadas na justiça do trabalho, mesmo naquelas onde não há doença, dano, contrariam a etiopatogenia do agravo em discussão, não satisfaçam critérios mínimos de nexo ou com nexo claramente estabelecido; (2) a vistoria faria parte da perícia médica, logo não é remunerada e todo médico seria capacitado para realizá-la e (3) a não realização de vistoria seria motivo para invalidação do ato pericial e sua realização é suficiente para que suas conclusões sejam acatadas.

A perícia São Tomé é sedutora, como costumam ser as crenças pseudocientíficas. A mente humana busca a infalibilidade através do raciocínio intuitivo optando por padrões estáveis, infalseáveis (que não podem ser colocados a prova, serem testados). “Então, algo que pareça certo, sob o ponto de vista do julgamento intuitivo, tem grande chance de estruturar a crença de julgamento e ser considerado correto mesmo quando existem evidências contrárias à crença. Aí está um motivo de porque as crenças pseudocientíficas têm tanto apelo. Basta parecer correto…” .

A perícia São Tomé parece correta uma vez que tem argumento coerente, entretanto, não tem qualquer fundamento: A regra “tometiana” prescreve: O que é “visto” é mais bem “analisado”, particularmente se quem “vê” é o “especialista” na área. Logo, para concluir é necessário visitar o posto de trabalho. Não é necessário fundamental a conclusão do laudo, basta ir ao posto de trabalho. Se o perito visitou o ambiente laboral a conclusão é indiscutível, se não visitou a conclusão é inválida.

É um procedimento infalseável. Qualquer crítica é rebatida com a própria argumentação criando o círculo que se autoperpetua e caracteriza a pseudociência: “Se não visitou o posto de trabalho, as alegações são infundadas”

O raciocínio intuitivo, rápido, incorporado sem esforço ou reflexão absorve a visão “tometiana” do “ver pra crer”. Ao assumir status de crença passa a ser aplicada de forma dogmática. Existe acórdão que de um só golpe, com base unicamente na alegação do autor, reforma sentença, substitui o médico perito e obriga o novo perito a realizar vistoria do posto de trabalho. Nenhuma base técnico-científica é apresentada.

A imposição da perícia São Tomé ao médico perito revela uma contradição insuperável: O magistrado determina a realização de perícia quando a prova do fato depende de conhecimento técnico e ao mesmo tempo define qual o procedimento técnico a ser adotado pelo perito designado para esclarecer a questão técnica discutida.

A perícia São Tomé impõe que o médico perito somente pode avaliar nexo se “conhecer” o posto de trabalho. O verbo conhecer é usado no sentido de visitar. Desta forma, visitar o posto de trabalho passa a ser condição necessária e suficiente para avaliar nexo causal entre trabalho e doença. Como “visitar” não passa de uma ferramenta capaz de gerar alguma informação, o procedimento “tometiano” transforma ferramenta em informação para em seguida transformá-la em dogma.

Ocorre que o verbo conhecer pode ser usado, segundo o dicionário online Oxford Languages, em quatorze situações. Em medicina, conhecer pode ser, nos termos deste texto, entendido como “ter informações sobre”.

O conhecimento médico é baseado em “ter informação sobre”. A informação é que deve ser necessária e suficiente para fundamentar a presença ou ausência do nexo e não a ferramenta que a gerou.

Perícia em posto de trabalho não passa disso: uma ferramenta que pode, em alguns casos, poucos na verdade, fornecer informação capaz de contribuir na elucidação do nexo causal pesquisado.

A perícia médica se conclui com três grupos de informações: informações que fundamentam o diagnóstico, informações sobre a etiopatogenia (que formam a referência sobre a possibilidade de existir nexo e é a base para sua confirmação) e finalmente informações, quando necessárias, sobre o ambiente de trabalho, usando os critérios de nexo, tal como se depreende dos ensinamentos de Gustavo de Almeida , que destaca os postulados de Bradford-Hill, condição INUS, relação NESS, propositura de Rothman, critérios de Simonin, de Franchini, recomendações da NIOSH e Resolução INSS/DC Nº 10/1999.

São fontes de informação sobre o ambiente de trabalho, sem querer esgotar o assunto: historia clínica-ocupacional, os estudos do local de trabalho (PPRA, PCMSO, LTCAT, Análise Ergonômica do Trabalho, ordem de serviço, PGR, trabalho em altura, a quente, espaço confinado, dentre outros normalizados pelas Normas Regulamentadoras), prontuário médico ocupacional, prontuários de médico assistente, prontuário de pericias previdenciárias, laudos médicos de outras instâncias judiciais, outras perícias realizadas no processo, experiência do perito na atividade em questão, literatura médica, dentre outros,

A perícia São Tomé, ao substituir conhecimentos científicos sobre avaliação de nexo causal em medicina pela aplicação de mera ferramenta, ocorre tão somente em alguns setores de apenas um ramo da justiça nacional. Mesmo assim, por onde passa, compromete a qualidade do ato pericial, tem direta repercussão negativa na qualidade da prestação jurisdicional trabalhista, enfraquece serviços de saúde e segurança, o que, por sua vez, termina por precarizar o ambiente de trabalho do brasileiro.

“Perito não crê e não cria. Perito fundamenta ”. Os fundamentos das conclusões periciais devem ser expostos em termos simples e coerência lógica , permitindo que o magistrado e demais interessados entendam como as conclusões foram alcançadas. Avaliar os fundamentos apresentados pelo perito é atividade inalienável do magistrado e demais interessados, não podendo ser substituída com conclusão incontestável produzida por ferramenta de baixa efetividade, por mais tentador que isso possa parecer.

Autor: Dr. Marcos Alvarez – Médico, formado na FAMERP em 1984, cirurgião geral via residência médica, Médico Endoscopista (SOBED/AMB), Médico do Trabalho (ANAMT/AMB), especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas (ABMLPM/AMB). É Pós-Graduado em Ergonomia. Possui experiência na área pericial de mais de 20 anos de atuação.

Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do autor, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.

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