11 dez 2021

Análise crítica sob a ótica do Direito Médico acerca da Resolução CFM nº 2297/2021

postado em: Coluna do Puy

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Análise crítica sob a ótica do Direito Médico acerca da Resolução CFM nº 2297/2021 (que dispõe de normas específicas para médicos que atendem o trabalhador) – Por Rodrigo de Puy

Em 18/08/2021, o CFM revogou a Resolução nº 2183/2018 e atualizou seus dispositivos por meio de nova Resolução federal.

Ressalta-se que a legislação ética que primariamente atentava para a saúde do trabalhador foi a Resolução CFM nº 1488/98.

Em que pese as alterações normativas, o artigo propõe reflexões singulares e “fora da caixa” para compreendermos a real dimensão da importância do normativo ético de maior impacto na saúde do trabalhador.

Preliminarmente, compete refletirmos sobre a ementa da Resolução, in verbis:

“Dispõe de normas específicas para médicos que atendem o trabalhador.”

O termo vem do latim “ementum,” que significa ideia, pensamento. Etimologicamente se refere à apontamento, lista, rol, resumo, síntese ou sumário. Seria então uma apresentação clara, concisa e objetiva do que se vai estudar/normatizar e os procedimentos a serem realizados acerca da disciplina.

No âmbito legislativo, o termo se refere à epígrafe do texto legal.

Basicamente, a ementa é composta por duas partes: verbetação e dispositivo. A verbetação é uma sequência de palavras-chave ou expressões que delimitam o objeto da ementa. Tem como funções a categorização/classificação da decisão ou do parecer e a facilitação do resgate da informação.

Por outro lado, o dispositivo é um enunciado que resume o entendimento sobre determinada questão que foi objeto da decisão ou do parecer ou regra deles resultante. Deve ser uma proposição com um sentido completo, trazendo em si o conteúdo da questão jurídica abordada. Portanto, deve conter em sua estrutura: o entendimento adotado, dentro de determinado contexto, com a sua fundamentação.

Pois bem.

Ao lermos a ementa da Resolução do CFM, o leitor remete a idéia (e o leva a crer) que envolve APENAS postulados éticos que norteiam a assistência ao trabalhador, tutelando mais amiúde regras nesta disciplina estabelecidos genericamente pelo Código de ética médica (CEM).

Especificamente, o CEM faz menção ao trabalhador em dois (02) dispositivos, vale dizer, os arts. 12 e 76:

“É vedado ao médico:

Art. 12 Deixar de esclarecer o trabalhador sobre as condições de trabalho que ponham em risco sua saúde, devendo comunicar o fato aos empregadores responsáveis.

Parágrafo único. Se o fato persistir, é dever do médico comunicar o ocorrido às autoridades competentes e ao Conselho Regional de Medicina.

Art. 76 Revelar informações confidenciais obtidas quando do exame médico de trabalhadores, inclusive por exigência dos dirigentes de empresas ou de instituições, salvo se o silêncio puser em risco a saúde dos empregados ou da comunidade.”

Em que pese esta reflexão inicial do leitor, esta ementa é completamente equivocada!

Não, caro colega, a Resolução não aborda apenas a assistência ao trabalhador, mas também a Perícia médica. Ou seja: dois (02) mundos diferentes, assistencial e pericial, em um mesmo normativo.

Vale o velho brocardo: “O hábito do cachimbo que entorta a boca.”

Esta reflexão preliminar é importante, pois deste pressuposto inicial decorrerá a análise de diversos dispositivos que faremos a seguir.

O que nos deparamos foi a reiterada transcrição das ementas anteriores, sem qualquer reflexão sobre a relevância do assunto.

Portanto, uma melhor redação sobre o tema seria:

“Dispõe de normas específicas para médicos que atendem o trabalhador e sobre a perícia médica.”

À título de esclarecimento os termos “perícia”, “periciado”, “perito” aparecem dezenas de vezes em todo o texto da Resolução CFM nº 2297/2021, desde os aspectos introdutórios, passando pelos artigos em si e finalmente na exposição de motivos.

Neste sentido, esta Resolução tem relevância ímpar aos médicos que exercem profissionalmente a perícia em seus consultórios.

Avançando na legislação, avaliemos o art. 2º da Resolução CFM nº 2297/2021:

“Art. 2º Para o estabelecimento do nexo causal entre os transtornos de saúde e as atividades do trabalhador, além da anamnese, do exame clínico (físico e mental), de relatórios e dos exames complementares, é dever do médico considerar:

I– A história clínica e ocupacional atual e pregressa, decisiva em qualquer diagnóstico e/ou investigação de nexo causal;

II– O estudo do local de trabalho;

III– O estudo da organização do trabalho;

IV– Os dados epidemiológicos;

V– A literatura científica;

VI– A ocorrência de quadro clínico ou subclínico em trabalhadores expostos a riscos semelhantes;

VII– A identificação de riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos, estressantes e outros;

VIII– O depoimento e a experiência dos trabalhadores;

IX– Os conhecimentos e as práticas de outras disciplinas e de seus profissionais, sejam ou não da área da saúde.

Parágrafo único. Ao médico assistente é vedado determinar nexo causal entre doença e trabalho sem observar o contido neste artigo e seus incisos.”

A primeira consideração que devemos fazer acerca deste artigo é sobre a incidência desta norma, disposta em destaque no parágrafo único, senão vejamos.

O estabelecimento de nexo de causalidade entre a doença/agravo e a profissiografia é atribuição NÃO APENAS DO MÉDICO QUE ASSISTE O TRABALHADOR, mas também ao médico perito e os assistentes técnicos (previdenciário, trabalhista, por exemplo)!

Ora, o texto legal se equivoca ao não mencionar: “Ao médico assistente e aos médicos perito e assistente técnico é vedado determinar nexo causal entre doença e trabalho sem observar o contido neste artigo e seus incisos.”

Digo isto por decorrência lógica do Código de Processo Civil:

“Art. 466, NCPC: O perito cumprirá escrupulosamente o encargo que lhe foi cometido, independentemente de termo de compromisso (…)

Art. 473: O laudo pericial deverá conter:

II – a análise técnica ou científica realizada pelo perito;

III – a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área de conhecimento da qual se originou. (…)

Art. 473, § 1º: No laudo, o perito deve apresentar sua fundamentação lógica, indicando como alcançou suas conclusões.

Art. 473, § 3º, NCPC: Para o desempenho de sua função, o perito e os assistentes técnicos podem valer-se de todos os meios necessários, ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando documentos que estejam em poder da parte, de terceiros ou em repartições públicas, bem como instruir o laudo com planilhas, mapas, plantas, desenhos, fotografias ou outros elementos necessários ao esclarecimento do objeto da perícia.

A omissão estabelecida no art. 2º da Resolução CFM nº 2297/2021 é equivocada, portanto.

A segunda consideração (ainda mais tormentosa que a primeira) é o equívoco que muitos colegas (médicos assistenciais e peritos) e juízes estão praticando ao interpretar este segundo artigo.

Infelizmente, alguns magistrados estão interpretando o dispositivo no sentido de que o perito/assistente técnico é OBRIGADO a praticar todos os elementos constantes nos seus incisos, desqualificando inclusive o laudo pericial em virtude do perito “não ter visitado o posto de trabalho”, por exemplo.

Da mesma forma, o médico assistente se vê alijado de dar o nexo causal laboral porque forçosamente “não visitou o posto de trabalho”.

Ora, o texto é muito claro que o médico deverá “CONSIDERAR” todas as circunstâncias descritas em seus incisos, em um rol exemplicativo e não taxativo (numerus clausus).

Ou seja: o perito do juízo (assim como o assistente técnico e o médico assistente), ao cotejar todas as provas apresentadas a ele (seja no processo ou fora dele), poderá utilizar das ferramentas que julgar importante para a formação de seu convencimento técnico, seja esta ferramenta algo exclusivo da seara médica ou não.

Isto é importantíssimo ser mencionado porque dos nove (09) incisos que o art. 2º da Resolução traz, diversas deles não são atos médicos exclusivos!

Exemplos:

I – Uma análise prévia de perícia de insalubridade realizada no processo não obriga o perito “visitar o posto de trabalho”, mas sim considerar os elementos constantes deste local, ao avaliar previamente o laudo pericial do engenheiro de segurança, cujo ato não é exclusivo médico, conforme inteligência da CLT:

“Art. 195 da CLT: A caracterização e a classificação da insalubridade e da periculosidade, segundo as normas do Ministério do Trabalho, far-se-ão através de perícia a cargo de Médico do Trabalho ou Engenheiro do Trabalho, registrados no Ministério do Trabalho.”

II – A análise do PPRA e PCMSO da empresa (adunado ao processo pelas partes) pelo perito pode ser capaz de elucidar o caso controvertido, CONSIDERANDO o local de trabalho, sem a real necessidade de obrigatoriamente o perito médico tenha que conferir “in loco” o posto de trabalho do obreiro;

III – Uma análise ergonômica do posto de trabalho (AET) elaborada por profissional de SST (saúde e segurança no trabalho) pode ser cotejada no processo pelo perito médico de tal sorte que seja o suficiente para interpretar os riscos envolvidos em determinada operação (riscos ergonômicos, carga mental).

A questão mais importante aqui é compreender que a visita ao posto de trabalho é uma discricionariedade do ato médico em si, e não uma obrigatoriedade.

Portanto, é totalmente equivocada a interpretação de que o médico assistente/perito/assistente técnico tenha que se obrigar a fazer visita de posto de trabalho, sob pena de que o relatório médico/laudo pericial/parecer técnico esteja de plano invalidados!

Repetimos: cabe ao médico CONSIDERAR estes elementos técnicos!

Avançando para o art. 14 da Resolução 2297/2021, temos:

“Art. 14. Conforme artigo 465 do Código de Processo Civil, o juiz nomeará perito especializado no objeto e na natureza da perícia. A perícia com fins de determinação de nexo causal, avaliação de capacidade laborativa/aptidão, avaliação de sequela/valoração do dano corporal, requer atestação de saúde e definição do prognóstico referente ao diagnóstico nosológico, o que é, legalmente, ato privativo do médico.

§1º É vedado ao médico participar como assistente técnico de perícia privativa de outra profissão regulamentada em lei.

§ 2º É vedado ao médico realizar perícia médica na presença de assistente técnico não médico. Nesse caso, o médico perito deve suspender a perícia e informar imediatamente ao magistrado o seu impedimento.”

O destaque está para o §2º do art. 14, que representa uma evolução da Resolução anterior vigente (Res. CFM nº 2183/2018), ao detalhar o procedimento que deve ser adotado diante de tal ocorrência, não previsto na norma anterior:

“Art. 14. (…) Parágrafo único. É vedado ao médico perito permitir a presença de assistente técnico não médico durante o ato médico pericial.”

Ademais, corrige uma distorção histórica que havia no âmbito dos Conselhos de Medicina, considerando que antes destas Resoluções havia apenas um (01) Parecer do CFM que vedava o médico atuar em perícia médica em presença de assistente técnico não médico:

“Parecer CFM nº 50/2017: Configura infração ética realizar perícia médica em presença de assistente técnico não médico. O médico perito não está impedido de vedar a participação de advogados das partes na perícia quando se sentir constrangido em sua autonomia e exercício profissional.”

Ressaltamos que a lei do ato médico (lei federal nº 12.842/2013), art. 4º, inciso XII, leciona:

“São atividades privativas do médico:

XII – realização de perícia médica e exames médico-legais, excetuados os exames laboratoriais, de análises clínicas, toxicológicas e de biologia molecular.”

No plano ético, a Resolução vigente corrigiu o erro formal do Parecer CFM nº 50/2017, dispositivo que este último era natimorto de plano.

Por quê?

Pareceres do CFM/CRM’s não tem caráter de vincular/obrigar condutas médicas sob o ponto de vista ético, não tem o poder de coercitividade; mas sim um enfoque de sugestionar ao médico a melhor conduta daquilo que o Conselheiro entende como ético.

Neste momento, o art. 14 da Resolução CFM nº 2297/2021 insere a obrigação ética do médico perito em não realizar perícias médicas na presença de assistente técnico não médico.

As Resoluções das autarquias têm sim poder imperativo, podendo sim estabelecer direitos e obrigações aos médicos; neste norte, foi configurado o instrumento correto (Resolução ao invés de Parecer para estabelecer a obrigatoriedade da conduta pericial).

Por fim, vale analisar o art. 16 da Resolução em tela:

“Art.16. Esta Resolução não se aplica aos médicos peritos previdenciários cuja atuação possui legislação própria, ressalvando-se as questões éticas do exercício profissional.”

Ora, novamente uma visão reducionista da prática pericial, que é muito mais ampla.

A prática pericial é vastíssima, por si só:

Portanto, cada um dos ramos da perícia médica possui sua legislação própria aplicável, não apenas o INSS!

Neste sentido, seria contrassenso priorizar deste escopo apenas o sub-ramo da perícia administrativa previdenciária, considerando todo o amplo mundo pericial.

Estas são as minhas reflexões.

Um forte abraço a todos!

Referências:

https://www.conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46839/tecnica-de-redacao-de-ementas-de-pareceres-juridicos-e-decisoes-judiciais – acessado em 06/12/2021.

Autor: Rodrigo Tadeu de Puy e Souza – Médico. Advogado. Pós-Graduado em Medicina do Trabalho. Mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: rodrigodepuy@yahoo.com. Site: www.pimentaportoecoelho.com.br

O Dr. Rodrigo Tadeu de Puy e Souza escreve periodicamente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna do Puy”.

Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista Rodrigo Tadeu de Puy e Souza, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.

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