21 fev 2019

A sociedade e a precarização da medicina

postado em: Temas Polêmicos

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A comunidade médica vem acompanhando as discussões envolvendo o tema da telemedicina desencadeadas pela Resolução do CFM nº 2.227/2018.

A questão é abordada sob a alegação de ter ocorrido o desenvolvimento de novas “tecnologias de informação e comunicação”. Entretanto a informação e a comunicação são inerentes à espécie humana. O que houve, como já ocorreu inúmeras vezes, foi uma mudança na forma que a informação é obtida, armazenada, recuperada, transmitida e utilizada. Nada de novo.

A medicina sempre absorve com extraordinária rapidez os avanços do conhecimento. O fato de a inflação médica ser maior do que os demais seguimentos da sociedade indica a rápida absorção dos avanços tecnológicos.

O exercício da Nobre Arte Médica exige conhecimento global do indivíduo, do seu meio social, cultural e econômico, além dos recursos terapêuticos disponíveis. O diagnóstico correto, a indicação da terapêutica adequada e sua eficaz implementação, ao longo dos séculos, estiveram associados ao conhecimento que o médico tem de seu paciente e de sua comunidade. É uma relação de confiança mútua, pessoal e intransferível. O médico, neste aspecto, é o guardião da dignidade do indivíduo, e o acompanha do seu nascimento à sua morte.

Esta guarda faz com que seja necessário enfraquecer a medicina quando se pretende submeter a sociedade à interesses particulares. Não sem motivo a história registra expurgos promovidos por governos totalitários, como os ocorridos no governo Stalinista e no nazismo. Com o mesmo objetivo existe a implantação de modelos de atendimento à saúde que maximizam os lucros, como a imposição do conceito de produtividade industrial ao atendimento médico pelas grandes corporações, sem considerar a qualidade.

Nestes casos, o pagamento de um pequeno valor por peça produzida (consulta, por exemplo) obriga o trabalhador (médico) a realizar número excessivo de atendimentos. A responsabilidade pela qualidade do atendimento, entretanto, continua sendo do médico. As corporações ficam com os lucros, a sociedade fornece riqueza em troca de atendimento precário os médicos ficam com a culpa, o alto índice de suicídio e as diversas outras doenças. O modelo de alta demanda e baixo, ou nenhum, controle de Karasek explica.

Não se trata, portanto, de se opor à telemedicina, pois que adequadamente aplicada é benéfica, estando inclusive incorporada em diversas rotinas.

O CFM ao realizar a necessária normatização do tema, entretanto, cometeu grave equívoco e gerou o fundamentado receio que a resolução, nos moldes atuais, cause a precarização do ato médico, favorecendo corporações e prejudicando a sociedade. Especial atenção deve ser dada à normatização da teleconsulta.

A telemedicina é definida, art. 1º, como o exercício da medicina mediado por tecnologia. A amplitude do termo tecnologia, entretanto, não é definida. Se a medicação por tecnologia é a única exigência, a medicina pode ser exercida por carta pois existe tecnologia no papel e na caneta. Apoiando a possibilidade está o fato de ser possível exercer a medicina de forma síncrona ou assíncrona, art. 2º.

A teleconsulta, art. 4º, é a consulta com médico e paciente em diferentes locais geográficos, o que inclui a medicina através do correio.

Cabe ressaltar ainda que “diferente local geográfico”, em nada se confunde com comunidade isolada, como alguns querem fazer parecer.

O texto do art. 4º, § 1º, “premissa obrigatória o prévio estabelecimento de relação presencial entre médico e paciente”, não é sinônimo de estabelecer relação médico paciente, não obriga que a primeira consulta seja presencial e nem que os demais atendimentos se relacionem com o agravo que gerou o primeiro atendimento. A língua portuguesa não permite estas interpretações, ainda que sejam desejáveis. Os serviços oferecidos livremente na rede mundial de computadores mostram isso.

O art. 5º, VII, obriga o registro da “observação clínica e dados propedêuticos”.

A expressão “observação clínica” não é sinônimo e nem substitui a anamnese, menos ainda a anamnese estruturada desejável neste tipo de atendimento.

Nenhuma das formas usadas para suprimir ou diminuir o tempo da anamnese foi capaz de substituir a anamnese conduzida presencialmente. As sutilezas do contato pessoal, a amplitude do campo de observação, o domínio do ambiente, a crescente empatia, a capacidade de ouvir e estabelecer relação de confiança, se mostrou insubstituível.

Propedêutica, segundo o Dicionário Aurélio, Século XXI é: “Med. Conjunto de indagações orais e de técnicas de exame físico que serve como base a partir da qual o médico se orienta para, por investigações mais extensas, se necessário, chegar a diagnóstico.”

A presença da expressão “observação clínica” afasta a possibilidade do termo propedêutica se referir ao conjunto de indagações orais, limitando-o ao resultado do exame físico. É preciso saber como se exige o registro de exame físico estando médico e paciente em regiões geográficas diferentes, podendo ainda atuarem de forma assíncrona.

E não se diga que o termo abrange a telepropedêutica, composta pela obtenção de informações através de meios eletrônicos como o ultrassom acoplado a aparelhos celulares que, diga -se de passagem, são muito úteis.

As exigências do art. 3º colocam o mercado nas mãos das grandes corporações e torna o médico, em particular os jovens, reféns dos detentores deste mercado.

A resolução impõe: § 4º “O teleatendimento deve ser devidamente consentido pelo paciente ou seu representante legal e realizado por livre decisão e sob responsabilidade profissional do médico.”

Aqui residem grandes entraves:

Apesar de existir a necessidade de consentimento livre e esclarecido, art. 5º, II, o CFM induz a população e pensar que a teleconsulta tem o mesmo grau de confiabilidade, resolutividade e segurança do atendimento presencial. Entretanto o Conselho não apresenta dados científicos que permitam usar esta premissa e nem expõe à população os riscos inerentes ao atendimento ora liberado.

Após colocar o mercado nas mãos de grandes corporações e induzir a população ao erro, ou pelo menos não alertar sobre os riscos, a resolução termina por colocar a responsabilidade da teleconsulta no médico: “realizado por livre decisão e responsabilidade profissional do médico”

Como é possível atribuir responsabilidade a quem não detém o controle do sistema de atendimento? O indivíduo dependente financeiramente, mal pago, com vínculo empregatício degradado pela “pejotização”, sob ameaça de dispensa sumária, arrimo de família, é capaz de ser livre em suas decisões? Pode o CFM atribuir essa responsabilidade ao médico como se este estivesse exercendo a medicina liberal em toda a sua plenitude, situação rara hoje em dia?

Os altos índices de suicídio, abuso de álcool e drogas, depressão, Burnout, dentre outros, falam eloquentemente por nós. O CFM deveria ouvir.

Em suma, a resolução subordina os interesses da população ao lucro das corporações infringindo enorme sofrimento aos médicos.

Quem deveria proteger agride? O CFM comete infração ética com esta resolução? Colocar a população em risco pode tipificar algum crime?

A responsabilização daqueles que se beneficiam e dos que permitem e aumentam essas benesses é, a meu ver, uma saída possível para a degradação social que nos envolve.

Autor: Marcos Alvarez – Médico, formado na FAMERP em 1984, cirurgião geral via residência médica, Médico Endoscopista (SOBED/AMB), Médico do Trabalho (ANAMT/AMB), especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas (ABMLPM/AMB). É Pós-Graduado em Ergonomia. Possui experiência na área pericial de mais de 20 anos de atuação.

Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal doautora, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.

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