08 mar 2017

Existe sigilo médico entre médicos?

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Prezados leitores.

Antes de responder a pergunta-título desse texto, incluo mais três perguntas inerentes ao tema e baseadas em situações hipotéticas (obs.: os nomes dos personagens são fictícios):

1. Grupo de whatsapp formado exclusivamente por médicos comenta sobre a trágica história de vida de D. Maria, paciente do Dr. Ricardo, um dos médicos do grupo. A história de D. Maria foi contada no grupo pelo Dr. Ricardo. Como só existe médicos no grupo, não houve “quebra” de sigilo médico por parte do Dr. Ricardo. Certo?

2. Médico do Trabalho usou dados sigilosos do prontuário do trabalhador para contestar NTEP (Nexo Técnico Epidemiológico), supostamente atribuído de forma equivocada pelo INSS. Como o prontuário foi diretamente do Médico do Trabalho para Médico Perito do INSS, o sigilo poderia mesmo ser revelado. Certo?

3. Auditor fiscal do trabalho é médico e exigiu o prontuário de determinado trabalhador no momento da fiscalização ao SESMT de uma empresa. O Médico do Trabalho entregou o prontuário. Como o auditor fiscal é médico não houve quebra de sigilo médico. Certo?

Vejamos o que nos diz o próprio Código de Ética Médica (CEM), em seu art. 73:

“Art. 73: É vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.” (grifo meu)

Interessante! Pelo artigo acima fica fácil observar que manutenção do sigilo das informações obtidas por um médico, quando de sua consulta com um paciente/trabalhador, é a regra. A “quebra” desse sigilo é a exceção (por vezes necessária). Mas quando o sigilo pode ou deve ser “quebrado”? O Código de Ética Médica elenca três situações básicas como regra geral:

a) Por motivo justo;
b) Por dever legal;
c) Por consentimento, por escrito, do paciente.

Percebam: não há entre os motivos para revelação do sigilo médico o fato de a informação ser passada “de médico para médico”, apesar do art. 85 do mesmo CEM, que assim estabelece:

“Art. 85. É vedado ao médico permitir o manuseio e o conhecimento dos prontuários por pessoas não obrigadas ao sigilo profissional, quando sob sua responsabilidade.”

Uma coisa é dizer que o médico está proibido de abrir informações confidenciais dos pacientes com profissionais não obrigados ao dever do sigilo profissional. Outra, bem diferente (e completamente equivocada!), é dizer que os médicos estão liberados a quebrar a relação de confidencialidade com os pacientes, caso isso ocorra com  profissionais obrigados ao mesmo dever do sigilo profissional, ainda que também sejam médicos. A relação entre profissionais obrigados por lei a terem o sigilo profissional, por si só, jamais foi uma condição suficiente para que não houvesse segredo profissional entre eles!

Alguém perguntará: “e quando esses mesmos profissionais médicos assistem o mesmo paciente?” Nesse caso, como a intimidade do paciente já foi aberta com os médicos em questão, não há mais sigilo a ser protegido entre eles. Mesmo assim, todas as informações sobre o mesmo paciente deverão ser compartilhadas, caso necessário, observando os consagrados Princípios da Beneficência e Não-Maleficência.

Já nos termos literais do art. 73 do CEM, a revelação das informações sigilosas pode até se estabelecer “de médico para médico”, desde que, como regra geral, haja motivo justo, dever legal ou consentimento por escrito do paciente. Excluídas essas condições, ainda que seja entre médicos, configura-se uma conduta antiética por parte daquele que revela o sigilo profissional.

Para aprofundar um pouco mais, o que seria “motivo justo” e “dever legal”?

Por motivo justo, entende-se, por exemplo, razão superior relevante, ou um estado de necessidade. Por motivo justo, “admite-se um interesse de ordem moral ou social que justifique o não cumprimento da norma [do sigilo médico]”, como nos ensina Genival Veloso de França.

Por sua vez, dever legal é a disposição normativa expressa, exemplo: doenças de notificação compulsória (o que inclui doenças ocupacionais, art. 169 CLT), comunicação de crime de ação pública (arma de fogo, lesão corporal grave), maus-tratos a crianças e idosos, entre outros.

Diante do acima exposto, aventuro-me a responder todas as perguntas formuladas no início desse texto.

1. Grupo de whatsapp formado exclusivamente por médicos comenta sobre a trágica história de vida de D. Maria, paciente do Dr. Ricardo, um dos médicos do grupo. A história de D. Maria foi contada no grupo pelo Dr. Ricardo. Como só existe médicos no grupo, não houve “quebra” de sigilo médico por parte do Dr. Ricardo. Certo?

R.: Independente do fato do grupo ser formado apenas por médicos, a pergunta a ser respondida é: houve motivo justo, dever legal ou consentimento por escrito de D. Maria para que essas informações fossem reveladas a outros médicos que não a assistiam? Para os que entendem que não (é o meu caso), houve “quebra” de sigilo por parte do Dr. Ricardo. Para os que entendem que sim, não houve “quebra” de sigilo por parte do Dr. Ricardo. Vale lembrar ainda que, se D. Maria fosse paciente de todos os médicos do grupo, também não haveria “quebra” de sigilo por parte do Dr. Ricardo por uma questão lógica: o sigilo de D. Maria já teria sido aberto, por sua própria vontade, com todos os médicos do grupo, logo, não haveria “quebra” de sigilo pois não haveria mais sigilo a ser “quebrado”. Mesmo assim, todas as informações sobre D. Maria deveriam ser compartilhadas, apenas se necessário, observando os consagrados Princípios da Beneficência e Não-Maleficência.

2. Médico do Trabalho da empresa Y usou dados sigilosos do prontuário do trabalhador para contestar NTEP (Nexo Técnico Epidemiológico), supostamente atribuído de forma equivocada pelo INSS. Como o prontuário foi diretamente do Médico do Trabalho para Médico Perito do INSS, o sigilo poderia mesmo ser revelado. Certo?

R.: Para os que entendem que essa conduta do Médico do Trabalho ocorreu por um motivo justo (me incluo nesse time e argumento minha tese num texto que pode ser lido AQUI) ou dever legal, o sigilo poderia mesmo ser revelado ao Médico Perito do INSS. Alguns dirão: “ora, como as informações vão de médico para médico, o sigilo médico não foi quebrado”. Não é verdade! O trabalhador confiou em apenas um dos médicos dessa história e com ele abriu sua intimidade, no caso, o Médico do Trabalho. O trabalhador não abriu sua intimidade ao Médico Perito do INSS. Quem fez isso (e portanto, quebrou o sigilo profissional das informações obtidas quando de sua entrevista com o trabalhador) foi o Médico do Trabalho. Mas ratifico: a questão central aqui não reside no fato de a informação ser passada “de médico para médico”, mas se houve motivo justo, dever legal ou consentimento por escrito do trabalhador para que essas informações fossem reveladas. Se houve (como eu entendo ter havido motivo justo), o sigilo poderia mesmo ser aberto. Para os que entendem que não houve, o sigilo não poderia ter sido aberto e o Médico do Trabalho que o fez, mesmo que tenha sido para com um Médico Perito do INSS, agiu de forma antiética.

3. Auditor fiscal do trabalho é médico e exigiu o prontuário de determinado trabalhador no momento da fiscalização ao SESMT de uma empresa. O Médico do Trabalho entregou o prontuário. Como o auditor fiscal é médico não houve quebra de sigilo médico. Certo?

R.: Errado! O sigilo diz respeito às informações obtidas pelo Médico do Trabalho quando de sua consulta com o trabalhador. O trabalhador confiou sua intimidade ao Médico do Trabalho e não ao auditor fiscal do trabalho. A questão mais importante aqui não é se houve ou não “quebra” de sigilo. Isso houve! Mas foi por motivo justo, dever legal ou consentimento por escrito do trabalhador? Para os que entendem que a ação fiscalizatória do auditor fiscal do trabalho se dá por um motivo justo (me incluo nesse time e argumento minha tese num texto que pode ser lido AQUI), o sigilo poderia mesmo ser revelado ao auditor fiscal do trabalho. Alguns dirão: “sim, mas apenas se o auditor fiscal do trabalho fosse médico.” Entendo que não. Mais uma vez: a questão central aqui não reside no fato de a informação sigilosa ser passada “de médico para médico”, mas se houve motivo justo, dever legal ou consentimento por escrito do trabalhador para que essas informações fossem reveladas ao auditor. Se houve (como eu entendo ter havido motivo justo), o sigilo poderia mesmo ter sido aberto ao auditor, independente de sua formação/graduação. Para os que entendem que não houve, o sigilo não poderia ter sido aberto ao auditor, mesmo que este fosse um médico.

Concluindo, retomo a pergunta-título desse texto: existe sigilo médico entre médicos? Sim. Justificando: a revelação das informações sigilosas obtidas quando de uma relação médico-paciente/trabalhador pode até se estabelecer “de médico para médico”, desde que, como regra geral, os médicos envolvidos assistam o mesmo paciente/trabalhador em questão (e sempre observem os consagrados Princípios da Beneficência e Não-Maleficência); haja motivo justo, dever legal ou consentimento por escrito do próprio paciente/trabalhador. Excluídas essas condições, ainda que seja entre médicos, configura-se uma conduta antiética por parte daquele médico que revela o sigilo profissional.

Como sempre, fiquem inteiramente à vontade para os sempre bem-vindos comentários (alinhados ou contrários às teses defendidas por mim ao longo desse texto).

Autor: Marcos Henrique Mendanha: Médico do Trabalho, Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas. Advogado especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP. Perito Judicial / Assistente Técnico junto ao TRT-GO e TRF-GO. Diretor Técnico da ASMETRO – Assesoria em Segurança e Medicina do Trabalho Ltda. Autor do livro “Medicina do Trabalho e Perícias Médicas – Aspectos Práticos e Polêmicos” (Editora LTr). Editor do “Reflexões do Mendanha”, coluna do site www.saudeocupacional.org. Coordenador do Congresso Brasileiro de Medicina do Trabalho e Perícias Médicas (realização anual). Coordenador Geral do CENBRAP – Centro Brasileiro de Pós-Graduações.

Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista Marcos Henrique Mendanha, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.

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