07 fev 2017

Peritos podem usar súmulas para fundamentar seus laudos?

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Prezados leitores.

Acredito que a maioria esmagadora dos meus colegas que atuam como peritos judiciais (pelos quais nutro grande respeito!) responderão a pergunta título desse texto da seguinte forma: “Não! De jeito nenhum. O perito não pode usar súmulas e orientações jurisprudenciais (OJs) para fundamentar seus laudos. Cabe ao perito somente a parte técnica. A fundamentação jurídica é prerrogativa apenas dos operadores do Direito.”

Exatamente nessa esteira, os competentes autores Fredie Didier Junior, Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira advertem:

“Ao perito não é dado, outrossim, intrometer-se na tarefa hermenêutica. Opinar sobre questões jurídicas, interpretando lei ou citando jurisprudência ou doutrina jurídica. Sua atuação é eminentemente técnica e recai, tão-somente, sobre fatos. Só deverá emitir juízos, baseados em sua especialidade profissional, sobre questões de fato”.

Pretensiosamente, e com o devido acatamento, ouso discordar. Antes de me “arremessarem pedras”, permitam-me justificar.

Começo dizendo que a lei não proíbe o perito de fundamentar seu laudo com uma súmula. Ao contrário! A lei afirma que o perito pode se valer de todas as fontes que estiver ao seu alcance, nos termos do novo Código de Processo Civil (NCPC), art. 473, IV, § 3, vejamos:

“Para o desempenho de sua função, o perito e os assistentes técnicos podem valer-se de todos os meios necessários, ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando documentos que estejam em poder da parte, de terceiros ou em repartições públicas, bem como instruir o laudo com planilhas, mapas, plantas, desenhos, fotografias ou outros elementos necessários ao esclarecimento do objeto da perícia.”

O perito pode usar todos os meios necessários… inclusive uma súmula.

O que é uma súmula?

“É o resultado da jurisprudência predominante de um tribunal superior brasileiro, autorizado pelo Código de Processo Civil.” (STRECK, 1998, p.116.)

Obs.: nunca é demais dizer que alguns tribunais usam termos semelhantes em lugar ou ao lado do termo “súmula”. O TST (tribunal Superior do Trabalho), por exemplo, além de súmulas, utiliza o que chama de “orientação jurisprudencial” (OJ) e de “precedente normativo” (PN), tudo conforme requisitos previstos em seu Regimento Interno.

Quais os objetivos de uma súmula?

a) Facilitar confecção de sentenças, uma vez que a menção da súmula já evita na sentença redações explicativas sobre o tema;

b) Uniformização de decisões judiciais;

c) “Divulgar para toda a comunidade jurídica e para os cidadãos em geral o entendimento do tribunal sobre aquele tema, o que ajuda a orientar a prática de atos jurídicos, o julgamento de processos administrativos etc., além de desestimular que pessoas, empresas e órgãos públicos iniciem processos judiciais baseados em teses rechaçadas nas súmulas.” (SARAIVA, Wellington – Temas de Direito Explicado para o Cidadão)

O que diz exatamente o NCPC sobre as súmulas?

Diz que as sentenças judiciais que forem contrárias às súmulas devem conter sólidas justificativas para essa discordância. Do contrário, serão consideradas infundadas. Leiamos:

“Art, 489, § 1 do NCPC: Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

VI. deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.”

Inevitavelmente surge a pergunta-provocação: ora, se o juízes devem considerar uma súmula em suas sentenças, por que os peritos não devem considera-las em seus laudos?

A pergunta faz todo sentido, uma vez que o art. 149 do NCPC afirma que o perito (entre outros atores processuais) é auxiliar da Justiça, do juiz.

Como uma analogia bem “à brasileira”, pensemos no futebol. O juiz (árbitro) e seus auxiliares (“bandeirinhas”) devem conhecer da mesma regra, uma vez que o futebol é o mesmo em toda extensão do campo. O jogo é um só!

Fazendo um paralelo com um processo judicial: os times são as partes; o juiz é o magistrado; os “bandeirinhas” são os peritos (auxiliares do juiz). O futebol é o processo judicial. O juiz e seus auxiliares devem conhecer das regras processuais, assim como o árbitro e seus “bandeirinhas” devem conhecer das regras do futebol.

Podemos afirmar que tanto os juízes como os peritos devem sim conhecer de súmulas e orientações jurisprudenciais referentes a respectiva matéria pericial. Alguém dirá que isso é impossível, incompatível com o saber pericial. Mais uma vez, ouso discordar. Para que tenhamos uma ideia, existem apenas 25 súmulas e 5 orientações jurisprudenciais do TST relacionadas a Segurança e Saúde no Trabalho. Isso mesmo! São apenas 30 verbetes, para os quais a leitura não exige mais do que 30 minutos totais. Por que esse conhecimento seria impossível? Definitivamente, não é. (Obs.: conheça agora as 25 súmulas e 5 OJs citadas, clique AQUI.)

Um perito dirá: “mas eu sou leigo em Direito, não sou obrigado a saber isso.” Com base no art. 149 do NCPC, eu rebateria essa afirmativa com duas perguntas: (a) como pode um auxiliar da justiça, um perito, não conhecer das regras mínimas que envolvem a interface do seu trabalho com a Justiça? (b) Como será possível auxiliar a Justiça sem conhecê-la minimamente? Não dá.

Pra tentar elucidar melhor, relato um exemplo concreto e bastante comum.

– O Médico do Trabalho / Engenheiro de Segurança é chamado pelo empregador para fazer um Laudo de Insalubridade por Risco Biológico.

– Como todos os trabalhadores exercem a atividade de forma intermitente, o profissional descaracteriza insalubridade, com base na literalidade Anexo 14 da NR-15.

– Confiando no laudo realizado, o empregador não faz o pagamento dos adicionais de insalubridade.

– Anos depois, todos os trabalhadores acionam a Justiça do Trabalho, que considera a Súmula n. 47 do TST, e defere insalubridade para todos eles.

Faço algumas perguntas-provocações sobre a situação narrada a seguir.

– A culpa pela condenação do empregador ao pagamento acumulado dos adicionais de insalubridade e outros custos do processo foi de quem: do próprio empregador ou do profissional que confeccionou o Laudo de Insalubridade?

– Cabe Ação Regressiva ao profissional que elaborou o Laudo de Insalubridade, nos termos do art. 934, do Código Civil?

– Se o uso de súmulas nos laudos pode ser considerado um “extrapolar de competência técnica”, o não uso pode ser considerado “negligência”?  

Apresento-lhes agora as minhas respostas (passivas de toda sorte de discordâncias). O empregador seguiu o laudo que, na minha opinião, foi negligente em não considerar a Súmula 47 do TST. Além da referida súmula estar diretamente ligada a matéria do laudo que redigiu, o profissional sabe (como se presume que seja do conhecimento de toda sociedade) que uma sentença contrária a uma súmula é uma exceção, e não uma regra. Sendo assim, o conhecimento sumulado já deveria ter sido adotado no laudo. Nesse prisma, cabe sim uma ação contra esse profissional, nos termos do art. 934 do Código Civil. Os mais extremos poderiam alegar até uma “falsa perícia” nos termos do art. 342 do Código Penal Brasileiro. Eu não chegaria a tanto.

Importante: tudo que vale para esse profissional (contratado pela empresa), valeria também para o perito judicial, uma vez que nos termos do art. 195 da CLT, somente Médicos do Trabalho e Engenheiros de Segurança do Trabalho podem confeccionar laudos de insalubridade, seja a pedido das empresas, seja para atender ordens judiciais (na função de peritos judiciais).

Para subsidiar um pouco mais o raciocínio que defendi ao longo deste texto, cito três julgados a seguir. Em todos eles, tudo indica que apesar da opção dos respectivos peritos pelo anexo 14 da NR-15, prevaleceu a Súmula n. 47 do TST.

“A defesa argumenta que a autora foi contratada através do Programa” Estratégia Saúde da Família “(ESF), sujeitando-se às condições de trabalho descritas em laudo técnico, que afasta a submissão a agentes insalubres de trabalho, pois o contato com pessoas portadoras de doenças infecto-contagiosas era apenas esporádico. No caso dos autos, resta caracterizado que o contato da autora com agentes insalubres era habitual, mesmo que intermitente; assim, era submetida a permanente risco de contaminação, atraindo a incidência do Anexo 14 da NR-15 do MTE. No mesmo sentido é o entendimento jurisprudencial majoritário consolidado na Súmula n. 47 do TST. Pelos fundamentos expostos, apesar da impugnação do réu, declaro que a autora esteve submetida à insalubridade em grau médio durante todo o contrato de trabalho, pelo que devido o respectivo adicional.” (AIRR 36943201250900190369-43.2012.5.09.0019)

“Afirma [o laudo pericial], também, que a Reclamante não trabalhava de forma contínua exposta aos agentes insalubres e que, sempre que o fazia, utilizava equipamentos de proteção individual. Cumpre notar, que o contato com o agente insalubre, mesmo que de forma não habitual, assegura ao trabalhador exposto a tal condição o pagamento do respectivo adicional de insalubridade, consoante entendimento, reproduzido na Súmula n.º 47 do Tribunal Superior do Trabalho.” (AIRR 1417005520115170009)

“Rechaço, ademais, o argumento patronal no sentido de que a obreira não tinha contato permanente com os fatores insalutíferos, pois o contato, ainda que intermitente, como é o caso dos balconistas de farmácia, não afasta o direito à percepção do adicional em questão, conforme se extrai do entendimento cristalizado na Súmula 47, do TST.” (AIRR 26837120115020057)

Pelos motivos expostos e por segurança jurídica de todos os atores envolvidos, sugiro, respeitosamente, aos profissionais que atuam como peritos que considerem também as Súmulas e OJs nos laudos que se relacionem com o tema em questão.

Peço-os, para o próprio bem, que pensem com carinho a respeito.

Sintam-se à vontade para os bons e fundamentados contraditórios.

Autor: Marcos Henrique Mendanha: Médico do Trabalho, Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas. Advogado especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP. Perito Judicial / Assistente Técnico junto ao TRT-GO e TRF-GO. Diretor Técnico da ASMETRO – Assesoria em Segurança e Medicina do Trabalho Ltda. Autor do livro “Medicina do Trabalho e Perícias Médicas – Aspectos Práticos e Polêmicos” (Editora LTr). Editor do “Reflexões do Mendanha”, no site www.saudeocupacional.org. Coordenador do Congresso Brasileiro de Medicina do Trabalho e Perícias Médicas (realização anual). Coordenador Geral do CENBRAP – Centro Brasileiro de Pós-Graduações.

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