18 maio 2013

FISIOTERAPEUTA COMO “PERITO MÉDICO”: UM ATO CRIMINOSO?

11 comentários.

Prezados leitores.

A participação de fisioterapeutas como peritos judiciais, em lides que envolvam os chamados “assuntos médicos”, é um tópico sempre muito polêmico.

Na postagem anterior, mostrei uma série de decisões que mostram que, mesmo entre os julgadores, essa é uma pauta completamente aberta e não pacificada.

E no que tange às questões penais? O profissional fisioterapeuta que atua como perito judicial num processo que envolva, por exemplo, o diagnóstico de uma doença ocupacional, atua de forma criminosa? Faz exercício ilegal da medicina? Incorre na prática do curandeirismo?

Vejamos abaixo alguns artigos do vigente Código Penal brasileiro:

Exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica
Art. 282 – Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos.
Parágrafo único – Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa.

Curandeirismo
Art. 284 – Exercer o curandeirismo:
III – fazendo diagnósticos:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos.
Parágrafo único – Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa.

Com base em tais artigos, muitos estudiosos (a quem verdadeiramente respeito e admiro) entendem que um profissional fisioterapeuta que atua como perito judicial num processo que envolva, por exemplo, o diagnóstico de uma doença ocupacional, atua sim de forma criminosa, fazendo exercício ilegal da medicina, e incorrendo na prática do curandeirismo.

Como médico (e defensor árduo desta classe profissional), gostaria de compactuar com tais pensadores… mas isso não me seria sincero à luz do pouco das ciências jurídicas que aprendi. Explico: os artigos 282 e 284 do Código Penal (supra citados) deixam claros a ilicitude e, consequentemente, o ato criminoso daqueles que realizam o exercício ilegal da medicina e a prática do curandeirismo (por exemplo, realizando diagnósticos que ultrapassem os limites de suas competências profissionais).

No entanto, o mesmo Código Penal, e seu artigo 23, assim coloca:

Não há crime quando o agente pratica o fato:
III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Suponhamos então, por exemplo, que o juiz espontaneamente nomeie um fisioterapeuta para que este profissional realize uma perícia judicial que envolva o diagnóstico de uma doença ocupacional, dando-lhe a opção de aceitar ou recusar esse nobre ofício. Por sua vez, este fisioterapeuta aceita tal encargo. A partir de agora, caberá ao fisioterapeuta cumprir o dever legal que lhe foi outorgado, nos termos do art. 422 do Código de Processo Civil, que assim nos ensina:

O perito cumprirá escrupulosamente o encargo que lhe foi cometido, independentemente de termo de compromisso.

Na mesma esteira, o próprio Código Penal, em seu artigo 330, nos faz interpretar que o descumprimento de uma ordem judicial também deve ser qualificada e autuada como crime.

Ora, se o próprio juiz (dentro da sua margem de discricionariedade) outorgou para esse profissional fisioterapeuta a tarefa de confeccionar o laudo pericial, a realização deste trabalho constitui-se, a partir de então, uma obrigação, um estrito cumprimento de dever legal e, portanto, exclui qualquer possibilidade de crime do ato. Não há mais que se cogitar a hipótese (também discutível – em virtude da ainda falta de previsão legal do que realmente venha a ser o chamado “ato médico”) de crime de exercício ilegal de medicina e/ou de curandeirismo, pois a antijuridicidade foi literalmente excluída nos termos no art. 23, III, do Código Penal, combinado com art. 422 do Código de Processo Civil. Ratificando: foi o próprio juiz quem escolheu este fisioterapeuta, e de forma espontânea.

Aos que assim não entendem, cabe uma reflexão a mais: se um eventual crime não foi desconstituído, o mandante do crime então é o próprio juiz e, portanto, também deverá ser considerado criminoso. Reflitamos sem paixão e com franqueza: alguém já ouviu falar de algum magistrado que tenha sido condenado penalmente por tal ato? Que tenha sido preso por tal conduta, ou o juiz ou o fisioterapeuta nomeado? Que nossas análises jamais se desconectem da realidade fática.

Alguns dirão: “mas um juiz trabalhista pode mesmo escolher um profissional não médico para a realização de uma perícia de diagnóstico de doença ocupacional?” Assim nos traz o Código de Processo Civil (CPC):

Art. 145. Quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico, o juiz será assistido por perito, segundo o disposto no art. 421.
§ 1º Os peritos serão escolhidos entre profissionais de nível universitário, devidamente inscritos no órgão de classe competente, respeitado o disposto no Livro I, Título VIII, Capítulo VI, Seção VII, deste Código.
§ 2º Os peritos comprovarão sua especialidade na matéria sobre que deverão opinar, mediante certidão do órgão profissional em que estiverem inscritos.
§ 3º Nas localidades onde não houver profissionais qualificados que preencham os requisitos dos parágrafos anteriores, a indicação dos peritos será de livre escolha do juiz.

Tenho observado na prática pericial, especialmente na Justiça do Trabalho, uma grande dificuldade dos magistrados em conseguir médicos para atuar como peritos. Os baixos honorários pagos, aliados à demora no recebimento destes, são os principais fatores relacionados à falta de médicos no campo pericial trabalhista. Da forma como as coisas estão estruturadas na Justiça do Trabalho, o desestímulo médico é evidente.

No entanto, se os médicos, de forma legítima, abrem mão do ofício pericial em virtude da baixa remuneração, a Justiça não pode parar por esse motivo. Em regra, os magistrados são sensíveis aos baixos valores pagos pelas atividades periciais (a todos os profissionais que a executam), ao mesmo tempo em que não possuem autonomia legislativa e orçamentária para mudar esse cenário. Aplica-se, então, uma adequação do “princípio da reserva do possível” no que tange ao pagamento dos honorários periciais.

Nesse contexto, ganha força o § 3º do art. 145 do CPC: “nas localidades onde não houver profissionais qualificados que preencham os requisitos dos parágrafos anteriores, a indicação dos peritos será de livre escolha do juiz”. Tal dispositivo era para ser uma exceção, mas em alguns locais, já se configura como regra. Ou seja, se um profissional (qualquer um) não aceitar o encargo pericial, outro profissional (qualquer um) poderá ser indicado mediante livre escolha do juiz. Chocante para muitos? Sim, mas é o que nos ensina as leis que elencamos ao longo desse texto… e o que assistimos em nossa prática diária de norte a sul do país.

À vontade para os sempre bem-vindos contraditórios e outros posicionamentos quanto ao tema.

Que Deus nos abençoe.

Marcos Henrique Mendanha

Sobre o assunto, veja também o Despacho n. 311/2015 do CFM.

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