28 mar 2024

Justiça garante redução de jornada com manutenção de salário a carteiro pai de menina com Síndrome de West

postado em: Direito do Trabalho

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Um carteiro conquistou na Justiça do Trabalho o direito à redução da jornada de trabalho para acompanhar filha com necessidades especiais. A decisão é da juíza Luciléa Lage Dias Rodrigues, no período de atuação na 3ª Vara do Trabalho de Sete Lagoas.

De acordo com o pai, a filha, menor de idade, é portadora da Síndrome de West e demanda acompanhamento, inclusive em terapias. Já a empresa pública Correios sustentou, na defesa, que a Lei nº 8.112/1990, invocada pelo autor, não se aplica aos servidores celetistas. Argumentou que o empregado é vinculado à jornada de 44 horas semanais e detentor de função gratificada.

Ao examinar o processo, a magistrada constatou a situação delicada de total dependência da menor em relação aos pais. Relatórios médicos e de profissionais da saúde provaram ser imprescindível para o desenvolvimento da criança o acompanhamento dos pais nas sessões de fonoaudiologia, fisioterapia e terapia ocupacional, assim como nas consultas médicas, além da continuidade dos cuidados no âmbito residencial.

Diante do contexto apurado e com respaldo no ordenamento jurídico vigente, a juíza decidiu condenar a empresa a reduzir a jornada de trabalho do pai da criança para quatro horas diárias e 20 horas semanais, sem exigência de compensação, mantida a remuneração e a gratificação de carteiro motorizado.

Fundamentos

A solução para o caso veio com a aplicação, por analogia, do artigo 98, parágrafo 3º, da Lei nº 8.112/1990, que prevê horário especial a servidor público federal que tenha cônjuge, filho ou dependente com deficiência. Segundo fundamentou a julgadora, apesar de não haver previsão nas normas celetistas, tampouco em instrumentos coletivos de redução da jornada para prestar assistência à filha acometida por doença, o dispositivo pode ser aplicado por força do artigo 5º, XXXV, da Constituição, combinado com o  artigo 4ª da LINDB e artigo 8º da CLT, atrelado à condição de empresa pública dos Correios.

Na sentença, a juíza trouxe reflexões sobre as mudanças ocorridas nos últimos tempos em relação à participação paterna no contexto familiar. “Embora culturalmente o cuidado e o zelo com as crianças foram atribuídos à genitora, a sociedade está em constante evolução e, sem dúvida, nos tempos modernos, o genitor consciente assumirá as responsabilidades da verdadeira paternidade, contrariando a vertente de “ajuda/auxílio” para a mãe, o que, infelizmente, muito ainda se vê em discursos assustadoramente ultrapassados.”, registrou. A magistrada valorizou, nesse contexto, a conduta do autor ao buscar “exercer o seu direito de ser pai, assumir as suas responsabilidades no cuidado e acompanhamento da sua filha”.

Com relação à extensão do artigo 98, parágrafo 3º, da Lei nº 8.112/1990 a empregados celetistas, a decisão explicitou que ocorre pelo critério de integração das normas em decorrência da lacuna da lei e também por equidade. “A Constituição da República/88 autoriza esta Magistrada a promover a integração, tendo por base a visão macro do sistema jurídico vigente, sobretudo, os preceitos axiológicos, precipuamente quando assegura direitos sociais, tais quais: saúde, educação, alimentação, trabalho, proteção à maternidade e à infância, bem como assistência aos desamparados”, registrou.

Além disso, frisou que a interpretação e a aplicação das normas jurídicas devem estar atreladas à ideia de sistema, notadamente ao ter por escopo maior os fundamentos da dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho (artigo 1º, incisos II e IV, da CR/88).

A juíza criticou a postura adotada pelos Correios diante da gravidade da situação enfrentada pelo trabalhador. “A ré deseja o melhor dos dois mundos, já que, por um lado, procura usufruir dos benefícios legais da Fazenda Pública e, por outro, rechaça veementemente a aplicação de dispositivo da Lei 8.112/1990 ao seu empregado, que se encontra em situação excepcional e necessita prestar assistência à filha portadora da Síndrome de West”, ponderou na sentença. Para ela, a empresa se equivocou ao expor “fundamentação rasa que busca excluir até mesmo preceitos constitucionais de garantia da dignidade do ser humano e valor social do trabalho”.

Conforme ponderado, por mera lógica, é muito vantajoso para a ré usufruir apenas das prerrogativas destinadas à Fazenda Pública. Por outro lado, a empresa defende a tese de aplicação literal aos seus empregados de dispositivos previstos na CLT, na tentativa de afastar o exame sistemático das normas que compõem o ordenamento jurídico, ainda mais quando se está diante de lacuna normativa, como é o caso do processo.

Na avaliação da magistrada, como empresa pública prestadora de serviços, a ré deve observar a sua função social (artigo 170 da Constituição da República) e não poderia ter negado ao trabalhador a possibilidade de adequação da jornada de trabalho para exercer a paternidade ao prestar assistência à filha pequena com Síndrome de West. Diante das condições retratadas no processo, a juíza repudiou a possibilidade de redução da remuneração do trabalhador, o qual necessita manter a renda da família para honrar os gastos com os tratamentos em razão da patologia que acomete sua filha.

De acordo com a decisão, o artigo 227 da Constituição da República incorporou a doutrina da proteção integral ao estabelecer que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Por sua vez, o artigo 229 da Constituição estabelece ser dever dos pais assistir, criar e educar os filhos menores. A decisão também se reportou à Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (Decreto nº 6.949/2009), que ampara o interesse da criança.

Por fim, a juíza se referiu à Lei nº 8.069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente, que consagra em seu artigo 3º: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.

Em reforço ao entendimento adotado, foi citado o acórdão proferido pela Segunda Turma do TRT de Minas, nos autos do processo nº 0010475-29.2020.5.03.0091 (RO), de relatoria da desembargadora Gisele de Cássia Vieira Dias Macedo, bem como o acórdão proferido pela Décima Turma, nos autos do processo nº 0010753-60.2019.5.03.0157 (ROPS), de relatoria da desembargadora Rosemary de Oliveira Pires Afonso.  

Com esses fundamentos, a magistrada acatou a redução de jornada, determinando que o carteiro encaminhe à empregadora relatórios médicos atestando o estado de saúde da filha a cada seis meses, a contar da publicação da decisão. Em decisão unânime, os julgadores da Sexta Turma do TRT-MG confirmaram a sentença. O processo foi remetido ao TST para exame do recurso de revista.

Fonte: Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região

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