14 mar 2018

A falácia do apelo à experiência pessoal na perícia

postado em: Coluna do Saulo

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O presente artigo firma-se no direito constitucional da liberdade de expressão intelectual (CR/88, art. 5°, IX); no direito constitucional da liberdade de ensinar e divulgar o pensamento (CR/88, art. 206, II); no pluralismo de ideais (CR/88, art. 206, III), na vedação de todo e qualquer tipo de censura (CR/88, art. 220).

Mesmo prestes a iniciar a década de 20 do século XXI ainda se mantêm a desafortunada prática da medicina baseada em eminência na perícia judicial, que consiste na seguinte disposição:

1) O indivíduo A é (alegou ser) uma autoridade no assunto X.
2) O indivíduo A faz afirmação W sobre assunto X.
3) Logo, W é verdade.

É uma improbidade intelectual esse apelo à autoridade, por parte de indivíduo solipsista com o argumento frágil e retórico da experiência pessoal de décadas ou pelo número de milhares de perícias realizadas para basear sua conclusão. Frequentemente não é possível nem ao mesmo provar a atuação de forma contínua, efetiva e de alta densidade em todas décadas que alega ou que realizou pessoalmente os milhares de exames periciais que alardeia, não passando de mera alegação que não vem carreada de comprovação contundente e incontroversa em ato contínuo. Certas vezes até enveredou para o empreendedorismo, dedicando-se a outras atividades, mesmo assim contando esse tempo de vida como experiência profissional e utilizando como argumento para firmar uma conclusão que deveria ser técnica ou científica.

Não é incomum um assistente técnico utilizar a estratégia falaciosa de tentar convencer o perito ou o outro assistente técnico de seu ponto de vista (e finalmente, o magistrado) em defesa de seu contratante, por argumento baseado em sua experiência pessoal de décadas de profissão, acreditando que irá encontrar o efeito Roma locuta, causa finita est. É o que Robert. M. Wachter (Goldman Cecil Medicina, 24 ed) chama de “medicina baseada em eminência”.

Juliana Midori Hayashide (São Paul, 2015, p. 133) cita Fletcher et. al. (2014) que abordam que “a ‘medicina baseada em eminência’, é representada por colegas mais experientes que acreditam que a experiência supera as evidências”.

Esse apontamento é mais um modo de expresssar a frase: “Você sabe com quem está falando”?

Acerca desse questionamento, Mário Sérgio Cortella (aqui) (re)lembra que:

“Você é um entre 6,4 bilhões de indivíduos [atuais, 7.6 bilhões] pertencente a uma única espécie, entre outras três milhões de espécies classificadas, que vive num planetinha, que gira em torno de uma estrelinha, que é uma entre 100 bilhões de estrelas que compõem uma galáxia, que é uma entre outras 200 bilhões de galáxias num dos universos possíveis e que vai desaparecer.” (CORTELLA)

Gustavo Bernardo aponta que “O senso comum se apóia na noção de experiência para sustentar suas certezas, recorrendo ao clichê: ‘eu sei por experiência própria’. (Ed. Annablume, p. 92, grifo nosso)

Esse argumentum ad verecundiam continua a ser utilizado hodiernamente, tornando a discussão entre peritos e entre assistentes técnicos uma dialética erística, em tempos de relativismo. Revela nonsense e relutância de compreender o momento atual da sociedade acreditar que irá ludibriar pessoas letradas com o argumentum ad verecundiam no campo de discussão técnica pericial, afundado na alegoria dos macacos (aqui) ao supor que as coisas sempre se manterão sem crítica.

Acerca do relativismo que “cada um atribui os sentidos que quer” as coisas, elucida o corajoso jurista Lênio Streck (aqui):

“Ora, não haveria aí uma contradição insolúvel, isto é, se tudo é relativo, é exatamente por isso que não devo acreditar em uma decisão (ou escolha) feita a partir exatamente da… relatividade? Elementar, pois não? Se tudo é relativo, inclusive o emissor da mensagem acabou de dizer algo relativizável… Isso é o que se chama de uma contradição performativa.” (STRECK, 2013).

 De fato, por que o perito ou assistente técnico relativista que se funda na experiência pessoal para se fundamentar imagina que alguém irá acreditar em sua avaliação, se “inclusive o emissor da mensagem acabou de dizer algo relatizável”?

O apelo à autoridade olvida que célebres pessoas tiveram destaque quando da juventude, o que seriam acusadas injustamente de pouca experiência pelos indivíduos que utilizam dessa falácia. Reitera-se que experiência não é condição necessária para maturidade, conhecimento e sabedoria.

Galileu Galilei aos 24 anos era professor de matemática em Pisa, já tendo feito descobertas científicas. Isaac Newton aos 23 anos de idade viu uma maça cair e desenvolveu seu estudo da lei da gravitação universal. Albert Einsten escreveu seu primeiro artigo científico por volta de 15 a 16 anos de idade e publicou pela primeira vez a teoria da relatividade quando tinha apenas 26 anos. Rosalind Franklin, pioneira em pesquisas de biologia molecular, faleceu aos 37 anos. Marie Curie foi agraciada com o prêmio Nobel de Física aos 36 anos. Mark Zuckerberg foi um dos fundadores, aos 19 anos, da rede social mais acessada no mundo. E, a que considero de maior importância entre todos os citados pelo seu legado, a humildade que lhe era marcante, por todos as demais virtudes que possuía, pela capacidade de dedicar-se a realmente ao que é necessário nesse mundo, Santa Teresinha do Menino Jesus, que escreveu sua obra A História de uma Alma quando jovem, tendo falecida aos 24 anos de idade.

Dizia Sêneca, advogado e filósofo, do Império Romano: Unusquisque mavult credere, quam judicare (“qualquer um prefere crer a julgar por si mesmo”).

Afirmou Arthur Schopenhauer (1997) que:

“[…] as pessoas comuns têm profundo respeito ante os especialistas de todo gênero. Ignoram que quem faz de um assunto sua profissão não ama o assunto em si, e sim o lucro que ele lhe dá; e que aquele que ensina um assunto raras vezes o conhece a fundo, porque àquele que o estuda a fundo não resta, em geral, tempo para dedicar-se ao ensino.” (SCHOPENHAUER, 1997, p. 164-165)

Se leigos são ludibriados com o argumento da experiência pessoal e na medicina baseada em eminência, não são presas fáceis os advogados, juízes, procuradores, peritos e assistentes técnicos que tem discernimento que a conclusão de um laudo ou parecer não podem ser baseados na experiência pessoal de vida do perito ou do assistente técnico. Uma conclusão pericial não pode ser uma escolha, a depender da subjetividade do perito ou do assistente técnico. A lei e as comprovações documentais não podem ser substituídas por voluntarismos interpretativos.

Fundamentar-se na quantidade de anos de atuação por parte de  quem encontra-se em uma discussão técnica e em um processo judicial é indevido, inacertado, evidencia o desconhecimento básico do direito adjetivo  e uma crise de paradigmas; em uma confunsão do corpo público e privado do profissional. Deve-se recordar que os artigos 52 e 53 da Resolução CFM n° 2.056/2013 determinam que tanto peritos e assistentes técnicos estão submetidos aos princípios da veracidade, do respeito à pessoa, da objetividade e da qualificação profissional.

Dispõe Veronika Daniel Kobs: “Como acreditar em um exemplo pessoal, que é parte da vivência de alguém, isto é, da vivência do autor da argumentação?” (Argumentação & Retórica, 2012, p. 62)

Realmente, não há como acreditar em uma conclusão que deveria ser técnica ou científica e que é baseada na vivência do autor da argumentação. A experiência pessoal é demasiadamente limitada, restrita aos casos que tomou conhecimento pessoalmente em um mundo com 7.6 bilhões de habitantes.

O jurista, advogado, político, diplomata, escritor, orador, ilustre baiano Rui Barbosa (1849-1923), o Águia de Haia, advertia que “Não se deixem enganar pelos cabelos brancos, pois os canalhas também envelhecem” (aqui).

David Isaacs (1999), em artigo publicado na NCBI (aqui) determina a existência do efeito halo nessa condição.

O efeito halo, investigado pelo psicólogo Edward Lee Thorndike, é conceituado como a possibilidade de que a avaliação de um indivíduo possa, sob um algum viés cognitivo, interferir no julgamento sobre outros importantes fatores, generalizando outras características. Não podemos nos deixar enganar pelo efeito halo.

Deve ficar bem claro, sobretudo para os magistrados, que a opinião pessoal do perito ou assistente técnico configura-se como o grau de recomendação mais baixo, nível D (dentro de uma escala entre A, B, C e D); e nível de evidência científica mais baixo, nível 5 (dentro de uma escala entre 1A, 1B, 1C, 2A, 2B, 2C, 3A, 3B, 4 e 5) com base nos critérios do Oxford Centre for Evidence-based Medicine (aqui), devendo ser desconsiderada no contexto probatório jurídico.

O Código de Processo Civil (aqui) determina no §2° do art. 473 que:

“É vedado ao perito ultrapassar os limites de sua designação, bem como emitir opiniões pessoais que excedam o exame técnico ou científico do objeto da perícia”.  (Lei n° 13.105/2015, grifo nosso)

Fundamentar o laudo ou parecer pericial com base em opiniões pessoais, que representam o mais baixo grau de recomendação e mais baixo grau de evidência torna o documento sem prestabilidade jurídica processual como meio de prova hábil, assim como fere disposição do CPC.

Ademais, se expõe a sanção o sujeito que fundamenta as razões do laudo em opinião pessoal (mesmo que verbalmente, em debate durante o exame), consoante o art. 158 do CPC, mesmo na modalidade culposa:

“Art. 158. O perito que, por dolo ou culpa, prestar informações inverídicas responderá pelos prejuízos que causar à parte e ficará inabilitado para atuar em outras perícias no prazo de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, independentemente das demais sanções previstas em lei, devendo o juiz comunicar o fato ao respectivo órgão de classe para adoção das medidas que entender cabíveis.” (Lei n° 13.105/2015, grifo nosso)

Ben Goldacre, psiquiatra britânico, desmascara a farsa do argumento da autoridade em palestra proferida do TED (aqui) acerca do que se chama bad science, dispondo que:

a forma de evidência absolutamente mais fraca conhecida do homem, que é a autoridade […] Em ciência queremos saber quais são as razões para se acreditar em algo […] Também não somos impressionados pela autoridade, porque é tão fácil enganar […] Em ciência, não nos importamos com quantos títulos você tem depois de seu nome”. (Ben Goldacre, 2011, grifo nosso)

Cabe destacar que assistentes técnicos são pessoas notadamente parciais, de confiança da parte, tanto é que não estão sujeitos a impedimento ou suspeição, por disposição do §1° do art. 466 do Código de Processo Civil.

Sendo de confiança da parte e não do juízo, a doutrina jurídica e a jurisprudência entende que configura uma tendência inata. Michael C. LaBossiere (2010) afirma que:

“Se um especialista é significativamente tendencioso então as afirmações que ele faz dentro de sua área serão menos confiáveis. Uma vez que um especialista tendencioso não será confiável, um Argumento de Autoridade baseado nesse especialista tendencioso será falacioso. Isto porque a evidência não justificará a aceitação da afirmação. Especialistas, sendo pessoas, são vulneráveis a vícios e preconceitos. Se há evidências de que uma pessoa é tendenciosa de tal sorte que possa afetar a confiança nas suas afirmações, um Argumento de Autoridade com base nessa pessoa é susceptível de ser falaciosa. Mesmo se a afirmação for verdade, o fato do especialista ser tendencioso enfraquece o argumento. Isto porque haveria razão para acreditar que o perito pode não estar fazendo a afirmação com base em análise cuidadosa usando seus conhecimentos. Pelo contrário, haveria razão para acreditar que a afirmação está sendo feita por causa de tendência ou preconceito do perito. […] A pessoa pode ser um especialista, mas sua experiência realmente não suporta a verdade da afirmação, porque a experiência de uma pessoa não determina se a afirmação é verdadeira ou falsa.” (42 Fallacies, grifo nosso)

E, a depender do caso concreto, o próprio perito indicado pelo juízo, pela sua condição humana, também pode ser tendencioso ideologicamente na disputa bipolar entre capital e trabalho, o que pode ser analisado e constatado por uma série histórica de sua atuação, inclusive se acumula as atividades de perito e assistente técnico para as mesmas empresas em processos distintos, do que se extrai da aplicação do excerto de Michael C. LaBossiere.

Nessa senda, a Operação Hipócritas da Polícia Federal (aqui) revelou que:

De acordo com o procurador da República Fausto Kozo Kosaka, que coordena a investigação, “a atual sistemática de atuação e de remuneração de peritos na Justiça do Trabalho estabelece um cenário que prejudica a imparcialidade dos laudos periciais e fomenta a prática de delitos como os investigados nesta operação”. Isso porque o profissional que atua como perito judicial pode também atuar como assistente técnico nomeado por uma das partes do processo, desde que em órgãos judiciários e processos distintos. Mesmo assim, Kosaka avalia que essa mescla de tarefas facilita o esquema de corrupção e prejudica a imparcialidade do perito. (Estadão, 2016).

Bem determinou João Scot Erígena que “a autoridade provém da razão, não a razão da autoridade”.

Hoje vigora a medicina baseada em evidências, não a medicina baseada em eminência, como a obra Medicina Interna de Harrison (2017) destaca:

“A medicina baseada em evidências refere-se à tomada de decisões clínicas que são formalmente sustentadas por dados, de preferência oriundos de experimentos clínicos prospectivamente projetados, randomizados e controlados. Essa abordagem contrasta de maneira drástica com a experiência pessoal isolada, que, frequentemente, é tendenciosa. A menos que se tenha em mente a importância de se usarem estudos maiores e mais objetivos para a tomada de decisões, mesmo os médicos mais experientes podem ser influenciados, de maneira exagerada, por experiências recentes por pacientes selecionados. […] Os médicos do passado acessavam primariamente sua própria experiência recordada […] Devido a amostras pequenas e eventos raros, a chance de se chegar a interferências causais erradas a partir da experiência pessoal é muito alta” (Medicina Interna de Harrison, 19 ed., Porto Alegre, 2017, grifo nosso, aqui)

Doravante, é preciso evoluir a prática, firmando as perícias judiciais na medicina baseada em evidências, em exame técnico ou científico, abstendo-se os profissionais do uso do argumentum ad verecundiam, de fundamentar-se na quantidade de décadas de experiência pessoal ou no número de milhares de perícias realizadas, que possuem o mais baixos níveis de evidência e grau de recomendação na área técnica e não tem agasalho processual na seara jurídica, muito pelo contrário, levam ao total descrédito do documento apresentado como supostamente cunho técnico/científico.

Autor: Saulo Soares – Médico do Trabalho. Advogado. Professor. Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre Magna cum Laude em Direito pela PUC Minas. Especialista em Direito Médico, Direito do Trabalho e Medicina do Trabalho. Detentor do Título de Especialista em Medicina do Trabalho. Autor do livro “Ser Médico ‘examinador’ do Trabalho: subserviência e precarização do jaleco branco – uma abordagem jurídico-científica” (Editora Buqui). Coordenador do livro “Temas Contemporâneos de Direito Público e Privado” (Editora D’Plácido). Coordenador do livro “Fluxo de Direito e Processo do Trabalho” (Editora CRV). Autor do livro “Direitos Fundamentais do Trabalho” (Editora LTr).

Obs.: esse texto é de autoria do colunista Saulo Soares, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.

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