23 dez 2017

Cigarro: liberdade do usuário ou responsabilidade dos fabricantes?

postado em: Coluna da Zafalão

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Já de início, é de suma importância deixar claro que este texto não tem cunho moralista, mas sim o objetivo de repensar a questão posta em análise.

Em 1993 a OMS incluiu o tabagismo na Décima Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) e, desde então, se considera que o ato de fumar causa dependência. Como cediço, a nicotina do tabaco causa dependência química similar à dependência de drogas como heroína ou cocaína[1].

Assim sendo, com o passar do tempo, o usuário fica mais tolerante à nicotina e passa a consumir mais cigarro para manter a substância por um maior período de tempo em seu corpo. Nesse ponto, é possível dizer que já não há mais livre-arbítrio, já que quimicamente surge a necessidade de satisfazer seu neuroreceptor.

Logo, é possível dizer que o uso do cigarro começa como curiosidade, se torna um hábito e, por fim, vira necessidade.

Já de antemão, é preciso sobrelevar que a jurisprudência nacional tem, repetidamente, julgado improcedentes ações indenizatórias nas quais fumantes, ex-fumantes ou seus familiares objetivam reparações junto aos fabricantes de cigarros, devido a doenças cuja causa se atribui ao fumo.

Em geral- e em resumo-, as alegações dos Requerentes se baseiam no Código de Defesa do Consumidor, através de elaboradas teses e argumentações as quais sustentam que o cigarro é produto defeituoso (artigo 12) e potencialmente nocivo à saúde (artigo 9º), cuja comercialização é proibida (artigo 10), dentre outras.

Vejamos os caputs de cada artigo: Artigo 9º – “O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto.”; Artigo 10 – “O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança.”; e Artigo 12 – “O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.”.

De outro lado, o Poder Judiciário, corroborando-se nas teses da indústria do tabaco- que inclusive influenciam a elaboração de livros, artigos, dissertações etc, sobre a questão-, rebatem o tema com argumentos como o livre arbítrio, ausência de nexo de causalidade, a licitude da atividade e a incidência da responsabilidade subjetiva.

Além disso, argumentam, também, que, em razão de estar naturalmente associado a riscos para a saúde, o cigarro é um produto de periculosidade inerente (art. 8º, CDC); bem como que o livre-arbítrio do fumante configuraria o que a lei denomina de culpa exclusiva da vítima (art. 12, §3º, III do CDC), que é uma excludente da responsabilidade civil dos fabricantes.

Nesse diapasão, o Ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça – STJ, no julgamento do REsp 1.113.804, teceu argumentos elucidativos a respeito da visão supra exposta, no qual explicou que a Constituição Federal “chancela a comercialização do cigarro (artigo 220, parágrafo 4º) e impõe restrições apenas à publicidade do produto”. Para o Ministro, “não é possível afirmar que o cigarro é produto defeituoso”, eis que o que o CDC preleciona diz respeito “a segurança do produto ou serviço, não podendo dizer respeito a uma capacidade própria do produto de gerar dano”. Ainda segundo o Ministro, o defeito do produto permitiria a troca, o que não é admissível no caso do cigarro.

Considerando que o risco é inerente ao produto, o ministro Salomão afirmou que “somente haverá responsabilização em caso de vício na informação ou falta de informação”, considerou, ainda, que “os fatos supostamente ilícitos imputados à indústria tabagista teria ocorrido a partir da década de 50, alcançando períodos anteriores ao CDC, não sendo possível simplesmente aplicar ao caso os princípios e valores hoje consagrados pelo ordenamento jurídico”. E, por fim, que “não havia dever jurídico da indústria do fumo informar os usuários acerca do risco do tabaco”.

Nesse ponto, cumpre ressaltar que várias decisões judiciais, de forma perigosa e delicada, consideram que é do conhecimento geral que fumar é prejudicial à saúde.

Ora, é possível afirmar que tal argumento simplesmente despreza décadas de omissão quanto à realidade das consequências causadas. Durante um longo período de tempo, o acesso à informação acerca, principalmente, dos danos causados pelo uso do cigarro, era extremamente limitado.

Façamos um teste pessoal: você realmente sabia que o cigarro é composto por mais de 4 mil substâncias, dentre elas: 1) – Amônia (presente em produtos de limpeza; corrosivo); 2) – Formol (utilizado para conservar os corpos depois da morte); 3) – Acetona (serve para remover esmalte da unha, tem efeito abrasivo; para limpeza); 4) – Naftalina (anti traça, matar barata e outros germes); 5) Alcatrão (utilizado inclusive para fazer asfalto, em obras e afins) – ligado aos cânceres de laringe, boca, estômago, bexiga, etc; e 6) – Nicotina (causa dependência, libera substâncias que dão prazer; bem estar, acalmam)? Além disso, você sabia que o cigarro causa quase 50 (CINQUENTA) doenças diferentes, desde alterações visuais e na memória até cânceres em diversos órgãos?[2]

É evidente que, ainda hoje, essas informações são insuficientes e incapazes de expor os alertas necessários sobre a variedade e gravidade das doenças que o cigarro pode causar. Desse modo, não é prudente que se afaste, de plano, a responsabilidade das empresas; indústrias do tabaco.

Ora, é inegável que a indústria do cigarro apenas se manifesta quando compelida principalmente pelos poderes Judiciário e Legislativo. Basta lembrar que as imagens de advertência sobre danos do tabagismo; a vedação em todo o território nacional, da propaganda comercial de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco (art. 3º da Lei nº 9.294/1996 com Redação dada pela Lei nº 12.546/2011); são algumas consequências de políticas públicas encabeçadas pelo Ministério da Saúde- e os fabricantes deste produto, inclusive, se opõem até mesmo judicialmente a tais medidas.

É importante ressalvar que a Lei não proíbe a exposição de produtos fumígenos nos locais de vendas (como padarias, lojas de conveniência, supermercados, etc), o que acaba por ser, de certa forma, uma propaganda; um atrativo para os consumidores em geral.

Em relação à questão ora em comento, é valida a recomendação do documentário “Dois Pesos e Duas Medidas”, disponível no YouTube, através do qual foi contada a história do senhor José Carlos Carneiro, que devido a uma doença causada exclusivamente pelo uso dos cigarros, teve suas pernas amputadas. Sua imagem está estampada em vários maços, com o fito de representar uma vítima do tabagismo. Ele também tentou processar os fabricantes de cigarro, sem êxito.

Nesse sentido, é de grande relevância citar a famosa sentença norte-americana de 2006[3], através da qual se reconheceu a atuação conjunta e global de nove indústrias do tabaco (dentre elas a Phillip Morris e a BAT, da qual a Souza Cruz é subsidiária), que se associaram com o objetivo de ludibriar governo e opinião pública visando impedir a regulação do cigarro, a divulgação de informações sobre seus malefícios, a responsabilização em ações judiciais, dentre outros.

Ainda a respeito da supracitada decisão emblemática, vejamos a grave afirmação de Bennett LeBow, Presidente da Vector Holdings Group (integra a indústria do tabaco): “se as empresas tabagistas realmente eliminassem o marketing para crianças, estariam fora do mercado em 25 ou 30 anos, porque não teriam consumidores suficientes para manter seus negócios.”[4]

A título de curiosidade, segue uma lista de 16 (dezesseis) vezes em que a Disney mostrou seus personagens fumando, lembrando que Walt Disney, criador de todo o império da marca, era fumante e morreu de câncer de pulmão em 1966: (https://www.megacurioso.com.br/cinema/85421-16-vezes-em-que-a-disney-mostrou-seus-personagens-fumando.htm).

É claro que a indústria cinematográfica também exibe, ainda hoje, seus mais famosos atores e atrizes em personagens fumantes. Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo e a sua famosa piteira; John Travolta em Pulp Fiction; Leonardo DiCaprio em Titanic; Robert Downey Jr. com seu cachimbo em Sherlock Holmes, dentre vários outros. Percebe-se que a propaganda continua extremamente ativa e atrativa no subconsciente das pessoas; expectadores; consumidores.

Ora, por óbvio que seria atentatório à liberdade que, por exemplo, o Estado, visando proteger a saúde de seus cidadãos, impedisse os consumidores de fumar. Entretanto, supostamente, o preço de tal liberdade seria a responsabilidade individual.

Por outro lado, é possível afirmar que, em relação ao tabagismo, não há a prevalência absoluta do livre arbítrio. Ora, é consenso que parar de fumar não é só uma questão de força de vontade, mas também de uma série de outros fatores, inclusive, físicos e psíquicos.

Com tais premissas em mente, observemos os artigos 944 e 945 do Código Civil:

Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.

Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.

Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.

Vê-se que, apesar de não ser justo que os fabricantes de cigarro suportem sozinhos a responsabilidade pelos males causados pelo consumo de seu produto, também não é razoável que o consumidor suporte sozinho tais danos. É possível que se reconheça responsabilidade de ambos.

Desse modo, é indispensável que se analise a realidade fática da situação posta, para que seja possível apurar a fração de culpa de cada uma das partes para a ocorrência do dano no caso concreto.

Dessa forma, se impede que somente uma das partes suporte os ônus e a outra usufrua apenas os bônus, como tem sido há décadas.

“Essa é a beleza da argumentação. Se argumentar corretamente, nunca estará errado.” – Obrigado por Fumar (filme).

[1] Disponível em: <http://www1.inca.gov.br/inca/Arquivos/t_Tabagismo.pdf>. Acesso em: 11 dez 2017.

[2] Disponível em: <http://www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?id=2588>. Acesso em 11 dez 2017.

[3] Disponível em: <http://www.actbr.org.br/uploads/conteudo/98_1209-livro-veredicto-final.pdf>. Acesso em 11 dez 2017.http://www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?id=2588

[4] Ibidem, pag. 37.

Autor (a): Elisa Zafalão – Advogada, graduada pela Universidade Federal de Goiás – UFG e Pós-Graduanda em Direito Público pela Instituição Damásio Educacional, atuante nas áreas Cível e Administrativo. Email: elisazafalao@gmail.com.

A advogada Elisa Zafalão escreve periodicamente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna da Zafalão”.

Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal da colunista, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.

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