26 set 2017

Terapia de “Reversão Sexual”: um olhar jurídico e psicológico

postado em: Coluna da Zafalão

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Todos nós assistimos no dia 15 deste mês de setembro os efeitos iniciais da liminar deferida pelo Magistrado Waldemar Cláudio de Carvalho, atuante na 14ª Vara do Distrito Federal, através da qual, substancialmente, determinou mudanças na forma como o Conselho Federal de Psicologia – CFP deve interpretar a resolução 001/1999.

De início, proponho a avaliação de uma questão bem simples: se as terapias e/ou estudos; pesquisas científicas ora em debate propõem e/ou analisam a possibilidade de “reorientação” ou “reversão sexual”, parte-se do pressuposto da existência de um padrão. E que padrão seria esse? Por óbvio que o heterossexual.

Assim sendo, é notório que, seguindo essa premissa (falaciosa), o homossexual seria considerado o desvio do padrão; o outro. Logo, ainda que não se tenha utilizado a expressão “cura-gay” no texto da decisão, ao se distanciar e “privilegiar” diferenças entre as orientações, elegendo-se um padrão, é possível facilmente- no mínimo- se verificar o cunho discriminatório e preconceituoso da proposta analisada.

Ora, nesse ponto, é importante ressaltar que, no dia 17 de maio de 1990 a Organização Mundial da Saúde – OMS retirou a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças. Segundo esta entidade, entendeu-se que a homossexualidade não é doença e sim uma variação natural da sexualidade humana. Vale lembrar que, devido a tal acontecimento, nesse dia símbolo da luta pelos Direitos Humanos é comemorado o Dia Internacional Contra a Homofobia.

Diante dessa caminhada histórica, nesse ponto, já é preciso pontuar que se a OMS promoveu esta mudança- ainda que tardia, já que ocorrida somente em 1990- é porque teve base científica e social para tal já há quase 20 (vinte) anos atrás.

Segundo a Resolução 01/1990 do CFP, “os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades” (artigo 3º, caput e parágrafo único).

Ainda, os termos do artigo 2º desta norma: “os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas”.

A título de curiosidade, vejamos os demais artigos desta Resolução do CFP:

Art. 1° – Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão notadamente aqueles que disciplinam a não discriminação e a promoção e bem-estar das pessoas e da humanidade.

(…)

Art. 4° – Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.

Art. 5° – Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 6° – Revogam-se todas as disposições em contrário.

A Resolução em questão, inicialmente, considerou ainda que, in verbis: a forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve ser compreendida na sua totalidade; que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão; e que a Psicologia pode e deve contribuir com seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões da sexualidade, permitindo a superação de preconceitos e discriminações.

Os autores da ação popular na qual a liminar em questão foi deferida, argumentaram que a resolução do CFP é, supostamente, um ato de censura, já que impede psicólogos de desenvolver estudos, atendimentos e pesquisas científicas sobre homossexualidade.

Ora, resta evidente, pela análise dos artigos e considerações supra expostas, que o CFP- em conformidade com o entendimento da OMS e de várias entidades como a ONU, a OEA, dentre outras-, propôs, primordialmente, a vedação de qualquer ação que avente algum tipo de “cura” para homossexuais. A partir de tal vedação, são coibidas as práticas discriminatórias e preconceituosas em relação aos homossexuais.

Mas a Resolução 01/1999 do CFP realmente proíbe os profissionais da área de promoverem estudos; pesquisas a respeito do tema? De acordo com o Conselho Federal de Psicologia, pesquisas científicas são submetidas às regras dos conselhos de ética das universidades onde ocorrem, do Ministério da Saúde e de órgãos como a Capes.

Ora, nessa disputa de princípios, claramente se elegeu a suposta liberdade de pesquisa- que em momento algum, a meu ver, restou censurada ou tolhida pela norma editada pelo CFP- em claro detrimento à vedação ao preconceito e à prática de métodos questionáveis que têm o potencial de resultar em danos psicológicos que podem chegar a ser irreparáveis.

Nesse ponto, com o fito de apresentar uma abordagem de cunho histórico e científico, na área da psicologia especificamente, a psicóloga e mestranda na Universidade Federal de Goiás – UFG, Priscilla Menescal Vieira dos Santos, nos traz, com maestria, os seguintes apontamentos esclarecedores acerca da questão:

“O primeiro aspecto que deve ser discutido é que um dos argumentos que sustentam a heterossexualidade como padrão é o da reprodução da espécie que, por sua vez, se dá pela relação sexual entre pessoas de sexos opostos, porém, cumpre ressaltar que, assim como alimentar-se não é apenas “matar a fome” ou ingerir alimentos a fim de estar saciado(a), a sexualidade é muito mais do que sexo ou o ato sexual em si e não tem como finalidade última a reprodução.

Nesse sentido, não se deve esperar que a escolha do(a) parceiro(a) sexual atenda apenas a interesses reprodutivos. A sexualidade é entendida pela psicologia como uma dimensão mais ampla da vida humana que é atravessada por afetos, identificações, desejos e vivências.

Além disso, precisamos considerar, também, que a forma com que vivemos a sexualidade na nossa cultura não é mesma forma que a humanidade a viveu ao longo da história, e nem a mesma que as pessoas vivem em outras culturas. Basta lembrar, por exemplo, que a sexualidade das mulheres só foi legitimada no ocidente por volta da década de 1960, com os movimentos de liberação sexual e muitas mulheres no oriente ainda não têm essa possibilidade, a não ser em função da reprodução e os desejos do marido.

Ou seja, as diferentes maneiras de se viver a sexualidade são legitimadas ou não em uma sociedade e outra, com isso, não há parâmetros biológicos ou psíquicos que determinem a vivência homossexual da sexualidade como uma patologia ou desvio.

Nesse caso, o que se percebe é apenas um dos muitos arranjos e contratos estabelecidos socialmente que determinaram ao longo da história o que é permitido ou não no campo da sexualidade, sob influência da Igreja, do Estado e da Medicina, instituições que regulam as práticas sexuais, oferecendo prescrições de como se deve vivê-la, se apenas no casamento ou não, se com roupas ou sem, se para reprodução ou prazer e uma série de outras normatizações.

A partir dessa mesma premissa surgem as Terapias Reparativas, também conhecidas como Terapias do “Armário”, que por apresentarem base teórica inconsistente e material empírico questionável, deixaram de ser reconhecidas como práticas legítimas e éticas pela APA (Associação Americana de Psiquiatria).

Essas modalidades de terapia prometiam mudanças no desejo sexual, mas apenas na direção heterossexual, porém, dado o alcance amplo da sexualidade na vida da pessoa, como por meio de pensamentos, sensações, emoções, afetos e lembranças que não comparecem apenas no momento do ato sexual e não dizem respeito apenas ao sexo em si, qualquer prática terapêutica desenvolvida até então seria ineficaz em tal tarefa. Essas terapias se justificavam substancialmente no sofrimento psíquico de quem vive a homossexualidade.

Como já mencionei, os acordos e parâmetros definidos socialmente também podem ser fonte de sofrimento psíquico, não só no campo da sexualidade, mas em outras instâncias da vida, assim, cumpre à psicologia não alimentar o jogo de forças sociais que colocam o indivíduo em sofrimento, e nem em condições de vulnerabilidade social e exposição a violências, isso porque nem sempre o pensamento hegemônico é necessariamente o que deve ser tomado como parâmetro no que diz respeito ao psíquico, emocional, sexual e social.”

É importante ressaltar que esta liminar é provisória e pode ser revogada. Nesse ponto, vale dizer que um dos critérios para concessão de medida liminar é a demonstração de perigo da demora em se resolver determinada questão. No entanto, com todo respeito à fundamentação do Magistrado em questão, faz-se imperioso questionar: qual a urgência em se relativizar a aplicação de uma Resolução que está vigente desde 1999?

As prioridades e urgências precisam ser bem definidas em um país no qual a cada 25 horas um LGBT[1] é morto vítima da homofobia.

Autor (a): Elisa Zafalão – Advogada, graduada pela Universidade Federal de Goiás – UFG e Pós-Graduanda em Direito Público pela Instituição Damásio Educacional, atuante nas áreas Cível e Administrativo. Email: elisazafalao@gmail.com.

No texto a autora contou com a participação da psicóloga e mestranda na UFG, Priscilla Menescal Vieira dos Santos.

A advogada Elisa Zafalão escreve periodicamente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna da Zafalão”.

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