01 mar 2017

Programa Mais Médicos – Uma análise crítica da legislação (parte II)

postado em: Coluna do Puy

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[Para conferir a Parte I dessa análise, clique AQUI.]

PARTE II – A LEI DO “MAIS MÉDICOS”  EM CONTEXTO COM A LEGISLAÇÃO TRABALHISTA E PREVIDENCIÁRIA ; DA AUTORIZAÇÃO PARA FUNCIONAMENTO DOS CURSOS DE MEDICINA E A AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA ; DA RESIDÊNCIA MÉDICA ;  CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Aspectos do regime de trabalho e de previdência social dos médicos

Conforme estampado na lei dos “Mais Médicos”, a relação jurídica existente no âmbito do “Programa Mais Médicos para o Brasil” entre a União e o médico participante (inciso I do § 2º do art. 13 da lei nº 12.871/13, BRASIL, 2013) “não constituem relação empregatícia de qualquer natureza” (art. 17 da lei nº 12.871/13, BRASIL, 2013), “ou relação de trabalho, ou sequer caracterizam contraprestação de serviços” (art. 29 da lei nº 12.871/13, itálico nosso).

O art. 20 da lei 12.871/13 enquadra o médico participante do programa como segurado obrigatório do RGPS, na modalidade contribuinte individual, in verbis:

Art. 20.  O médico participante enquadra-se como segurado obrigatório do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), na condição de contribuinte individual, na forma da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991.

Parágrafo único.  São ressalvados da obrigatoriedade de que trata o caput os médicos intercambistas:

I – selecionados por meio de instrumentos de cooperação com organismos internacionais que prevejam cobertura securitária específica; ou

II – filiados a regime de seguridade social em seu país de origem, o qual mantenha acordo internacional de seguridade social com a República Federativa do Brasil (negrito nosso)

Todo o programa é estruturado no sentido de afastar a relação de emprego. A oitava turma do TST julgou o Agravo de Instrumento em Recurso de Revista  AIRR – 382-62.2014.5.10.0013, entendendo que a Justiça do Trabalho não tem competência para julgar ação civil pública do Ministério Público do Trabalho contra a União por supostas irregularidades trabalhistas no “Programa Mais Médicos”.  A relação de trabalho entre os profissionais e a Poder Público tem por base relação jurídico-administrativa e, portanto, deve ser analisada pela Justiça Comum.

Em que pese a respeitável decisão do TST, julgamos que essa relação de emprego existe. Traremos luz em alguns pontos. Entendemos que a condição do médico participante é de prestação de serviços, constatando-se os elementos de pessoalidade, onerosidade, subordinação, habitualidade. Estes profissionais prestam atendimento médico ambulatorial nos postos de saúde a toda população adstrita na localidade, atuando com foco na promoção de saúde, prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças e agravos. Os profissionais se deslocam para os municípios credenciados ao programa com intuito de trabalhar e atender a uma necessidade de atendimento médico vinculado às necessidades do SUS.

Pois bem. Façamos um juízo crítico: qual o real motivo do médico intercambista ingressar neste Programa? Será o interesse em trabalhar como médico ou obter título de pós-graduação que não possui validade no seu país de origem? Ao avaliarmos o médico brasileiro, qual o interesse do mesmo prorrogar o “Programa Mais Médicos” por período idêntico, senão o de trabalhar? Seria para obter dois títulos idênticos de pós-graduação em Saúde da Família? Por fim, avaliemos a figura do “tutor médico” que coordena e acompanha estes médicos. Decerto que este tutor não está presente na maior parte do tempo, haja vista que o mesmo é responsável por muitos médicos que estão trabalhando em unidades de saúde distribuídas pelo município ou mesmo pelo Estado. Neste norte, e no que tange à questão meramente técnica, o trabalho do médico no posto de saúde reveste-se efetivamente de cunho assistencial ou acadêmico, ou ambos? A figura do tutor não seria o de acompanhamento da regularidade prestação dos serviços (médico e demais profissionais de saúde), material (avaliação periódica da infra-estrutura do local, ferramentas de trabalho, dispensação de medicamentos, entre outros) e de Clima organizacional na Unidade de Saúde, além das demais questões administrativas?

A lei previdenciária (8.212/91, alterada por leis posteriores) leciona quais são os possíveis contribuintes individuais, no seu inciso V, in verbis:

V – como contribuinte individual:

  1. a) a pessoa física, proprietária ou não, que explora atividade agropecuária, a qualquer título, em caráter permanente ou temporário, em área superior a 4 (quatro) módulos fiscais; ou, quando em área igual ou inferior a 4 (quatro) módulos fiscais ou atividade pesqueira, com auxílio de empregados ou por intermédio de prepostos; ou ainda nas hipóteses dos §§ 10 e 11 deste artigo;
  2. b) a pessoa física, proprietária ou não, que explora atividade de extração mineral – garimpo, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou por intermédio de prepostos, com ou sem o auxílio de empregados, utilizados a qualquer título, ainda que de forma não contínua;
  3. c) o ministro de confissão religiosa e o membro de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa;
  4. e) o brasileiro civil que trabalha no exterior para organismo oficial internacional do qual o Brasil é membro efetivo, ainda que lá domiciliado e contratado, salvo quando coberto por regime próprio de previdência social;
  5. f) o titular de firma individual urbana ou rural, o diretor não empregado e o membro de conselho de administração de sociedade anônima, o sócio solidário, o sócio de indústria, o sócio gerente e o sócio cotista que recebam remuneração decorrente de seu trabalho em empresa urbana ou rural, e o associado eleito para cargo de direção em cooperativa, associação ou entidade de qualquer natureza ou finalidade, bem como o síndico ou administrador eleito para exercer atividade de direção condominial, desde que recebam remuneração;
  6. g) quem presta serviço de natureza urbana ou rural, em caráter eventual, a uma ou mais empresas, sem relação de emprego;
  7. h) a pessoa física que exerce, por conta própria, atividade econômica de natureza urbana, com fins lucrativos ou não;

Após elencar as possibilidades de contribuinte individual, notamos que nenhuma das alíneas contempla o médico que trabalha pelo programa “Mais Médicos”.

Decerto que o melhor entendimento do enquadramento jurídico-previdenciário destes profissionais seria o de segurado obrigatório, modalidade empregado, conforme o art. 12, inciso I, alíneas “d”, “g”, “i”, in verbis:

Art. 12. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas:

I – como empregado:

  1. d) aquele que presta serviço no Brasil a missão diplomática ou a repartição consular de carreira estrangeira e a órgãos a ela subordinados, ou a membros dessas missões e repartições, excluídos o não-brasileiro sem residência permanente no Brasil e o brasileiro amparado pela legislação previdenciária do país da respectiva missão diplomática ou repartição consular;
  2. g) o servidor público ocupante de cargo em comissão, sem vínculo efetivo com a União, Autarquias, inclusive em regime especial, e Fundações Públicas Federais;
  3. i) o empregado de organismo oficial internacional ou estrangeiro em funcionamento no Brasil, salvo quando coberto por regime próprio de previdência social;  (negrito nosso).

Notamos que o médico intercambista poderia se enquadrar como empregado consoante às alíneas “d” e “i”, se entendermos que o “Mais Médicos” como uma missão diplomática (alínea “d”) ou mesmo que a mão de obra médica é intermediada pela OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde), no caso dos médicos cubanos.

No caso dos médicos brasileiros formados no exterior ou no Brasil, o melhor entendimento para a situação previdenciária dos mesmos seria o da alínea “g”, ou seja, uma vez que o profissional não atende os requisitos do art. 37, II, CF/88 (admissão à Administração Pública por meio do concurso público), devendo, pois, ser contratado por “tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público” (inciso IX, art. 37, CF/88). Como se trata de contratos administrativos por prazo determinado, os mesmos deverão reger-se pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), entendendo-se que os profissionais possuem vínculo de subordinação à Administração Pública, na modalidade empregado.

A lei 12.871/13, ao estabelecer que o médico é segurado obrigatório na modalidade contribuinte individual, impõe a este sujeito passivo das contribuições previdenciárias o importe de 20% da renda mensal auferida. Com efeito, o Estado se desonera de sua quota de contribuição. O médico deve contribuir sozinho com 20% do valor da bolsa para a Previdência oficial. Portanto, não há cota previdenciária patronal.

Uma vez que o nosso entendimento acima explicitado prevalecesse, haveria mudança na contribuição previdenciária. Os médicos deveriam ter deduzidos apenas 11% da renda auferida ao INSS e o Estado seria responsável por contribuir com 20% na sua quota parte.

Assim, o que percebemos é que a lei claramente busca mudar o enquadramento legal do médico vinculado ao programa “Mais Médicos” (de empregado para contribuinte individual), com intuito de reduzir custos com pessoal, ao eliminar sua quota no custeio do INSS para estes profissionais.

Todavia, há de se ressaltar a figura do médico supervisor e tutor, dando contornos de aperfeiçoamento na área de Atenção Básica em saúde como “pós-graduação médica” conforme o art. 19 da lei 12.871/13:

Art. 15.  Integram o Projeto Mais Médicos para o Brasil:

I – o médico participante, que será submetido ao aperfeiçoamento profissional supervisionado;

II – o supervisor, profissional médico responsável pela supervisão profissional contínua e permanente do médico; e

III – o tutor acadêmico, docente médico que será responsável pela orientação acadêmica. (negrito nosso)

Na prática, este acompanhamento do supervisor e tutor acadêmico junto ao médico participante com intuito de promover a interface teoria-prática para aprimoramento profissional não é tão perceptível. O que se constata na prática são reuniões pontuais para avaliar o andamento/regularidade do programa e desenvolvimento da monografia/trabalho de conclusão de curso. Não se observa a presença física do supervisor no atendimento diuturno dos pacientes ou mesmo reunião clínica para discussão dos casos. Desta forma, tal como lecionado no art. 1º da lei Lei nº 6.932/81, não está registrado como Residência Médica, que

constitui modalidade de ensino de pós-graduação, destinada a médicos, sob a forma de cursos de especialização, caracterizada por treinamento em serviço, funcionando sob a responsabilidade de instituições de saúde, universitárias ou não, sob a orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional. (negrito nosso)

Portanto, o “Programa Mais Médicos” reforça a intensão de interiorizar a prestação de serviços médicos para áreas de escassez de profissionais.

Relação de trabalho dos médicos

O art. 19 da lei 12.871/13 prevê a remuneração dos médicos intercambistas:

Art. 19.  Os médicos integrantes do Projeto Mais Médicos para o Brasil poderão perceber bolsas nas seguintes modalidades:

I – bolsa-formação;

II – bolsa-supervisão; e

III – bolsa-tutoria.

  • 1º Além do disposto no caput, a União concederá ajuda de custo destinada a compensar as despesas de instalação do médico participante, que não poderá exceder a importância correspondente ao valor de 3 (três) bolsas-formação (2013).

O médico intercambista faz jus à bolsa-formação, além da ajuda de custo para instalação pela União e auxílio moradia pelo município. Em se tratando de profissionais que prestam serviços com perfeição técnica semelhante, estes devem ser remunerados isonomicamente. Na prática, se constatam irregularidades na contraprestação, por não se verificar uniformidade. No caso dos intercambistas cubanos, há a celebração do contrato por meio de pessoa jurídica interposta (governo cubano e OPAS), que recebem as quantias consignadas pelo governo brasileiro. Os cubanos, por sua vez, recebem US$ 400 (cerca de R$ 900) no Brasil e mais US$ 600 depositados em uma conta em Cuba. O restante é repassado à Cuba.

Outra situação que também fere o princípio da isonomia, é que se constata diferença de remuneração entre os médicos de ciclos de programas diferentes.  Programas posteriores ao primeiro processo seletivo são melhores remunerados que os do primeiro ciclo. Estes não tiveram o reajuste visando à equiparação salarial dos demais.

Também não estão previstos nos contratos dos integrantes do programa o pagamento de férias remuneradas e de 13º salário. Novamente, uma burla aos normativos trabalhistas com objetivo do Estado reduzir os custos com encargos trabalhistas.

Da autorização para funcionamento de cursos de Medicina e a autonomia universitária previstos pela Lei 12.871/13

As universidades federais são autarquias que possuem autonomia para elaborar sua grade curricular, sem interferência do Ministério da Educação.

Todavia, a lei do “Mais Médicos”, com intuito de aumentar a oferta de médicos no país e de profissionais em ramos da Medicina que atendam às necessidades do SUS, estabelece regras que exorbitam a competência que é designado às universidades.

A referida lei, no capítulo II – “Da autorização para o funcionamento de cursos de Medicina”, o art. 3º autoriza a abertura indiscriminada e funcionamento de novos cursos de Medicina, sob o fundamento principal de interiorizar a atuação destes profissionais.

Todavia, o texto legal não aprofunda no enfrentamento das causas que compelem os médicos a não se fixarem nestes locais tais como: infraestrutura física inadequada para prestação dos serviços, inexistência de rede assistencial de referência e contra referência, baixa qualificação da equipe multidisciplinar, precarização das relações de trabalho, dentre outros.

Primordialmente, a preocupação legal é expandir quantitativamente a relação médico/população, sem, no entanto priorizar investimentos estruturais (hospitais, clínicas, equipamentos), expandir a cobertura de procedimentos médicos e dispensação de medicamentos pelo SUS, além da integração/ incremento na capilaridade da rede credenciada.

Pela lei, o Ministério da Saúde funcionaria como consultor para a autorização dos cursos de Medicina junto ao Ministério da Educação e Cultura (MEC).  São requisitos formais as unidades hospitalares bem constituídas (certificação como hospital de ensino, manter programa de residência médica em pelo menos dez especialidades, além de manter programas de certificação qualidade – exigidos no inciso II, §5º) tornam estas exigências “letra morta” em virtude do caos na saúde pública hospitalar vigente. Assim, vejamos estes dispositivos, in verbis:

Art. 3º A autorização para o funcionamento de curso de graduação em Medicina, por instituição de educação superior privada, será precedida de chamamento público, e caberá ao Ministro de Estado da Educação dispor sobre:

I – pré-seleção dos Municípios para a autorização de funcionamento de cursos de Medicina, ouvido o Ministério da Saúde;

II – procedimentos para a celebração do termo de adesão ao chamamento público pelos gestores locais do SUS;

  • Na pré-seleção dos Municípios de que trata o inciso I do caput deste artigo, deverão ser consideradas, no âmbito da região de saúde:

I – a relevância e a necessidade social da oferta de curso de Medicina; e

II – a existência, nas redes de atenção à saúde do SUS, de equipamentos públicos adequados e suficientes para a oferta do curso de Medicina, incluindo, no mínimo, os seguintes serviços, ações e programas:

  1. a) atenção básica;
  2. b) urgência e emergência;
  3. c) atenção psicossocial;
  4. d) atenção ambulatorial especializada e hospitalar; e
  5. e) vigilância em saúde.
  • 2º Por meio do termo de adesão de que trata o inciso II do caput deste artigo, o gestor local do SUS compromete-se a oferecer à instituição de educação superior vencedora do chamamento público, mediante contrapartida a ser disciplinada por ato do Ministro de Estado da Educação, a estrutura de serviços, ações e programas de saúde necessários para a implantação e para o funcionamento do curso de graduação em Medicina.
  • 7º A autorização e a renovação de autorização para funcionamento de cursos de graduação em Medicina deverão considerar, sem prejuízo de outras exigências estabelecidas no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes):

II – a necessidade social do curso para a cidade e para a região em que se localiza, demonstrada por indicadores demográficos, sociais, econômicos e concernentes à oferta de serviços de saúde, incluindo dados relativos à:

  1. a) relação número de habitantes por número de profissionais no Município em que é ministrado o curso e nos Municípios de seu entorno; (negrito nosso)

Avançando na questão da autonomia universitária, a lei do “Mais Médicos”, em seu capítulo III – “Da formação médica no Brasil” propõe nova grade curricular para o curso de Medicina e institui que a sua implementação seja feita pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), conforme o art. 4º, in verbis:

Art. 4º O funcionamento dos cursos de Medicina é sujeito à efetiva implantação das diretrizes curriculares nacionais definidas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE).

  • Ao menos 30% (trinta por cento) da carga horária do internato médico na graduação serão desenvolvidos na Atenção Básica e em Serviço de Urgência e Emergência do SUS, respeitando-se o tempo mínimo de 2 (dois) anos de internato, a ser disciplinado nas diretrizes curriculares nacionais.

(negrito nosso)

O dispositivo estampado traz o termo genérico “curso de Medicina”, não informando se de fato se o mesmo se enquadra no âmbito de Universidade, Centro Universitário ou Faculdade.

Nossa Carta Magna, nos art. 206 estabelece os princípios a autonomia universitária (igualdade, liberdade de pensamento, pluralismo de ideias, gestão democrática) que propicia a efetivação desta autonomia, lecionado no art. 207:

Art. 207. “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.”

Portanto, no plano didático, as universidades estabelecerão os seus currículos.

De forma concorrente, compete à União legislar sob a educação e ensino, todavia apenas  para estabelecer normas gerais, conforme o arts. 22 e 24, CF/88:

“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XXIV – diretrizes e bases da educação nacional;

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: IX – educação, cultura, ensino e desporto; § 1º – No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.” (negrito nosso)

A lei n.º 9.394/96, em seu artigo 53, reitera no âmbito do conceito de autonomia universitária a prerrogativa de ações de planejamento como estabelecimento de programas e projetos, in verbis:

Art. 53 – No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições: […]

II – Fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes;

IV – fixar o número de vagas de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio;

Parágrafo único – Para garantir a autonomia didático-científica das universidades caberá aos seus colegiados de ensino e pesquisa decidir, dentro dos recursos orçamentários disponíveis sobre: […]

III – elaboração de programação dos cursos; (negrito nosso)

Se de fato tratarmos no âmbito institucional universitário, a Lei dos “mais médicos” é claramente inconstitucional, pois ela regulamenta conteúdos e seu porcentual na grade curricular do curso de graduação de Medicina, por opção política.

A lei 12.871/13, em seu art. 4º, normatiza a grade do curso de graduação em Medicina, o que fere a autonomia constitucional universitária, ao dar competência ao Ministério de Educação, através do Conselho Nacional de Educação (CNE) para reestruturar a grade com ênfase na saúde pública e na atenção básica, in verbis:

Art. 4º O funcionamento dos cursos de Medicina é sujeito à efetiva implantação das diretrizes curriculares nacionais definidas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE).

  • 1º Ao menos 30% (trinta por cento) da carga horária do internato médico na graduação serão desenvolvidos na Atenção Básica e em Serviço de Urgência e Emergência do SUS, respeitando-se o tempo mínimo de 2 (dois) anos de internato, a ser disciplinado nas diretrizes curriculares nacionais.
  • 2º As atividades de internato na Atenção Básica e em Serviço de Urgência e Emergência do SUS e as atividades de Residência Médica serão realizadas sob acompanhamento acadêmico e técnico, observado o art. 27 desta Lei

A lei do “Mais Médicos” também altera parte dos cursos de pós-graduação na modalidade Residência Médica. Os programas de Residência Médica considerados de acesso direto (art. 6º, II) permanecem inalterados; para as especialidades básicas (Clínica médica, Cirurgia, Ginecologia e Obstetrícia, Pediatria e Medicina Preventiva e Social), além de Psiquiatria, é necessário cursar um ano da residência em Medicina Geral de Família e Comunidade (art. 7º, § 1º). Adicionalmente, o parágrafo 2º leciona que será necessária a realização de um a dois anos do Programa de Residência em Medicina Geral de Família e Comunidade para os demais Programas de Residência Médica, conforme disciplinado pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), excetuando-se os Programas de Residência Médica de acesso direto, prolongando ainda mais a especialização médica vigente. A especialização, neste último caso, pode igualar ou mesmo ultrapassar o tempo de graduação. Exemplo seria a formação em Cardiologia. Neste caso, seria um ano de Medicina da Família e Comunidade; dois anos de Clínica Médica; dois anos de Cardiologia, além de “x” anos destinados à subespecialização.

Da residência médica

A lei nº 6.932/81  dispõe sobre o programa de Residência Médica.

A lei do “Mais Médicos”, no artigo 22, caput e § 2º, dispõem:

Art. 22.  As demais ações de aperfeiçoamento na área de Atenção Básica em saúde em regiões prioritárias para o SUS, voltadas especificamente para os médicos formados em instituições de educação superior brasileiras ou com diploma revalidado, serão desenvolvidas por meio de projetos e programas dos Ministérios da Saúde e da Educação.

  • O candidato que tiver participado das ações previstas no caput deste artigo e tiver cumprido integralmente aquelas ações, desde que realizado o programa em 1 (um) ano, receberá pontuação adicional de 10% (dez por cento) na nota de todas as fases ou da fase única do processo de seleção pública dos Programas de Residência Médica a que se refere o art. 2º da Lei no 6.932, de 1981 (negrito nosso).

O Ministério da Educação criou a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) pela lei nº 12.550/11, além de seu estatuto social pelo decreto nº 7.661/11.

Pela lei 12.550/11, em seus artigos 9 (caput) e 10 (caput e parágrafo único) e o decreto 7.661/11, (Estatuto Social – artigo 3º, parágrafo único) permitem que o Ministério da Saúde estabeleça regras de bonificação para prova de Residência Médica, in verbis:

Art. 9: A EBSERH será administrada por um Conselho de Administração, com funções deliberativas, e por uma Diretoria Executiva e contará ainda com um Conselho Fiscal e um Conselho Consultivo.

Art. 10. O regime de pessoal permanente da EBSERH será o da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943,  e  legislação  complementar,  condicionada  a  contratação  à  prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, observadas as normas específicas editadas pelo Conselho de Administração.

Parágrafo único.

Os editais de concursos público para o preenchimento de emprego  no  âmbito  da  EBSERH  poderão  estabelecer,  como  título,  o  cômputo  do  tempo  de  exercício  em  atividades  correlatas  às  atribuições  do respectivo emprego (BRASIL, [lei 12.550 de] 2011, negrito nosso).

Art. 3º: A EBSERH terá por finalidade a prestação de serviços gratuitos de  assistência  médico-hospitalar,  ambulatorial  e  de  apoio  diagnóstico  e terapêutico à comunidade, assim como a prestação às instituições públicas federais de ensino ou instituições congêneres de serviços de apoio ao ensino, à pesquisa e à extensão, ao ensino-aprendizagem e à formação de pessoas no campo da saúde pública, observada, nos termos do art. 207 da Constituição, a autonomia universitária.

  • 2º No desenvolvimento de suas atividades de assistência à saúde, a EBSERH  observará  as  diretrizes  e  políticas  estabelecidas  pelo  Ministério  da Saúde (BRASIL, 2011, negrito nosso)

Desta forma, o normativo harmoniza perfeitamente com esta modalidade de pós-graduação, e os Ministérios da Educação e Saúde atuam sinergisticamente.

A lei do “Mais Médicos” faculta aos médicos com registro (CRM) no Brasil escolher entre duas opções:

1- Ajuda de custo para instalação e auxílios alimentação e moradia pagos pelas prefeituras; ou

2-  Incentivo de 10% nas provas de residência do país.

Na primeira modalidade, o profissional poderá permanecer por três anos no município, prorrogáveis por mais três anos – cuidando da comunidade e desenvolvendo diversas atividades de educação e integração ensino-serviço. Na segunda, a atuação do profissional poderá durar somente o período de um ano. No entanto, após o prazo necessário para garantir a pontuação na residência (12 meses), o profissional pode optar por continuar no programa ou migrar para a opção em que receberá os benefícios auxílios alimentação e moradia.

O profissional que completar a atuação de um ano com vistas ao incentivo de 10%, mas não passar na residência imediatamente, poderá permanecer atuando no mesmo local. Ou seja, a sua vaga não será oferecida a outro profissional e ele não precisará participar do processo de seleção. Mas é importante lembrar que, pelas regras do programa, o profissional só recebe incentivos como auxílio moradia e alimentação e ajuda de custo para instalação quando ele vai atuar num município diferente do que ele mora.

A lei do “Mais Médicos” inova ao instituir avaliações periódicas aos discentes graduandos em Medicina (bianual) e aos médicos residentes (anual), resguardadas as competências do Ministério da Educação e da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), estampado no art. 9º, caput e §1º e 2º, in verbis:

Art. 9º É instituída a avaliação específica para curso de graduação em Medicina, a cada 2 (dois) anos, com instrumentos e métodos que avaliem conhecimentos, habilidades e atitudes, a ser implementada no prazo de 2 (dois) anos, conforme ato do Ministro de Estado da Educação.

  • 1º É instituída avaliação específica anual para os Programas de Residência Médica, a ser implementada no prazo de 2 (dois) anos, pela CNRM.
  • 2º As avaliações de que trata este artigo serão implementadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), no âmbito do sistema federal de ensino

De fato, é um avanço no sistema avaliatório nacional do graduando e do médico residente, além das instituições, propiciando maior controle social destes profissionais/rede de ensino e hospitais que ingressam no mercado de trabalho anualmente. Todavia, não esclarece qual(is) são(serão) o(s) meio(s) avaliatório(s), qual (is) sanção(ões) será(ão) imposta(s) àqueles (discentes e instituição) com desempenho insuficiente e quais medidas de controle seriam empregadas para reabilitação neste desempenho. Decerto que serão necessários outros instrumentos normativos que instrumentalizem este artigo.

Os arts. 10 e 11 já buscam trazer este norte, ao incumbir o Ministério da Educação expedir resoluções para adequar a matriz curricular com os ditames legais:

Art. 10.  Os cursos de graduação em Medicina promoverão a adequação da matriz curricular para atendimento ao disposto nesta Lei, nos prazos e na forma definidos em resolução do CNE, aprovada pelo Ministro de Estado da Educação.

Parágrafo único.  O CNE terá o prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado da data de publicação desta Lei, para submeter a resolução de que trata o caput ao Ministro de Estado da Educação.

Art. 11.  A regulamentação das mudanças curriculares dos diversos programas de residência médica será realizada por meio de ato do Ministério da Educação, ouvidos a CNRM e o Ministério da Saúde

Vemos, finalmente, que a lei 12.871/13 é complexa por envolver Ministérios, Autarquia e outras entidades, além de trazer diversas alterações no texto legal com intuito prioritário de aumentar a oferta e interiorizar profissionais médicos em nosso país. Paralelamente, trouxe mudanças no sistema educacional médico, estabelecendo novo padrão de estrutura curricular, tanto em nível de graduação quanto na residência médica. Todavia, a lei não foi capaz de trazer de fato melhoria na infraestrutura em saúde, no incremento dos procedimentos previstos no SUS, na maior inclusão dos demais profissionais de saúde no sistema ou mesmo na melhoria da assistência farmacêutica, imprescindíveis para efetivação plena do direito constitucional à saúde.

CONCLUSÃO

O programa “Mais Médicos” é fundamentado em evidências da necessidade do atendimento em saúde da população, visando garantir o direito constitucional à saúde do cidadão.  Para a efetividade do SUS no direito universal à saúde é necessário avançar nas medidas estruturantes de médio e longo prazo, envolvendo formação e qualificação profissional, além de ampliar a rede de atenção primária, secundária e terciária. Os esforços dedicados para a interiorização médica não devem violar direitos trabalhistas, previdenciários, além da autonomia universitária e autárquica profissional que balizam os critérios mínimos para formação profissional.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

EPSM – Estação de Pesquisa de Sinais de Mercado. Construção do índice de escassez de profissionais de saúde para apoio à Política Nacional de Promoção da Segurança Assistencial em Saúde. Belo Horizonte: EPSM/NESCON/FM/UFMG, 2010. Disponível em <https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/2443.pdf>. Acessado em 29 set. 2015.

SANTOS, Leonor Maria Pacheco; COSTA, Ana Maria; GIRARDI, Sábado Nicolau. Programa Mais Médicos: uma ação efetiva para reduzir iniquidades em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 20, n. 11, p. 3547-3552, 2015.

Referências Legislativas

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acessado em 03 nov. 2016.

BRASIL. Lei n. 3.268, de 30 de Setembro de 1957. Dispõe sôbre os Conselhos de Medicina, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 30 set. 1957. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3268.htm>. Acessado em 03 nov. 2016.

BRASIL. Lei n. 6.932 de 7 de julho de 1981. Dispõe sobre as atividades do médico residente e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 07 jul. 1981. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6932.htm> Acessado em 03 nov. 2016.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 03 nov. 2016.

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TCU – Tribunal de Contas da União. Auditoria opera­cional: Programa Mais Médicos e Projeto Mais Médicos para o Brasil; avaliação da eficácia do programa. TC, n. 005.391, p. 8, 2014.

Websites consultados

Programa Mais Médicos (site). Perguntas frequentes. Disponível em <http://maismedicos.gov.br/perguntas-frequentes-de-medicos>. Acessado em 10 ago. 2016

YARAK, Aretha; NUBLAT, Johanna; HAUBERT, Mariana. Contrato do governo com cubanos fere lei, dizem especialistas. Folha de São Paulo (online), 21/02/2014. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/02/1415533-contrato-do-governo-com-cubanos-fere-lei-dizem-especialistas.shtml>. Acessado em 20 jun. 2016

Autor (a): Rodrigo Tadeu de Puy e Souza – Médico. Advogado. Pós-Graduado em Medicina do Trabalho. Mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: rodrigodepuy@yahoo.com. Site: www.pimentaportoecoelho.com.br

O doutor Rodrigo Tadeu de Puy e Souza escreve mensalmente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna do Puy”.

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