30 out 2016

Empresa não quer pagar exames complementares do PCMSO: o que fazer?

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Começamos este texto lembrando que, em nossa prática laboral, temos visto uma enormidade de exames solicitados no PCMSO (Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional) os quais não guardam absolutamente nenhuma relação com a função em análise. Quanto a essa prática temos inegociáveis reservas, especialmente pelo caráter de exclusão social que ela representa.

Não consideramos razoável, por exemplo, a solicitação de VDRL (exame de sangue para rastreamento de sífilis) para um “auxiliar administrativo”, empregado em um escritório de contabilidade. Por quê? Pois entendemos que, se o exame clínico for satisfatório, não será o resultado do VDRL que o qualificará como “inapto”, ou seja, nesse caso, o VDRL não é decisivo para fins de aptidão laboral. Alguns dirão: “mas pelo menos assim o Médico do Trabalho poderá incentivar esse trabalhador a conhecer e cuidar da sua saúde”. Ora, se o Médico do Trabalho for partir dessa premissa, terá de pedir também, além do VDRL, sorologias para hepatites, HIV, provas de atividades inflamatórias, tomografia e ressonância magnética de corpo inteiro para detecção de tumores em estágios iniciais, etc., para todos os empregados que estão sob seus cuidados. Isso também os incentivaria a conhecer e cuidar de suas vidas… mas é dispendioso, discriminatório, e exageradamente inaplicável.

Mesmo respeitando outras condutas, embora não concordando com elas, em nossa prática laboral adotamos o seguinte protocolo, como regra: além dos exames compulsórios legalmente previstos nos Quadros I e II da Norma Regulamentadora n. 7 (NR-7), bem como em outras NRs e legislações específicas, em geral, só prescrevemos outro exame complementar nos casos em que, mesmo que o paciente estivesse “apto” clinicamente, o resultado desse exame complementar pudesse comprometer sua aptidão.

Agora, partindo do princípio de que os exames solicitados são pertinentes à função em análise, e de que o resultado desses exames é um fator essencial na decisão de conferir “apto” ou “inapto” a esse trabalhador, repousamos nosso entendimento no sentido de que: se uma empresa se recusa a realizar/custear os exames complementares (de acordo com os riscos levantados pelo PPRA — Programa de Prevenção de Riscos Ambientais, e demais NRs), o ASO (Atestado de Saúde Ocupacional) também não deve ser liberado pelo Médico do Trabalho/”Médico Examinador”.

Fundamentos:

• Princípio Fundamental n. II do atual Código de Ética Médica: “O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”.

• Princípio Fundamental n. VI do atual Código de Ética Médica: “O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade”.

• Princípio Fundamental n. VII do atual Código de Ética Médica: “O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente”.

Exemplificando: vemos com estranheza a atitude de um Médico do Trabalho/”Médico Examinador” que, após a realização do exame clínico, emite o ASO, por exemplo, de um “auxiliar de produção” de uma mineradora, o qual se expõe vigorosamente a poeiras contendo sílica, sem a devida realização dos exames complementares pertinentes a essa função (alguns já preconizados no Quadro II da Norma Regulamentadora n. 7). Com fulcro no Princípio Fundamental n. VII do atual Código de Ética Médica, usando de sua (muitas vezes só teórica) autonomia, e considerando que a situação exemplificada não é de urgência ou emergência, nesse caso, entendemos que o Médico do Trabalho/”Médico Examinador” só deveria liberar o ASO após a realização do exame clínico e de todos os exames complementares prescritos no PCMSO (Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional).

Caso libere os ASOs sem os devidos (e necessários) exames complementares correspondentes, quais seriam as possíveis penalidades que o Médico do Trabalho/”Médico Examinador” poderia sofrer?

a) Apesar de ainda não ser uma prática frequente, o auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) poderia embargar e interditar a clínica de medicina do trabalho onde atendesse esse Médico do Trabalho/”Médico Examinador”, ou a própria empresa (empregadora), conforme item 3.1.1 da NR-3, além de também multá-la, conforme anexo II da NR-28. Há relatos de que essa prática já é aplicada em algumas poucas cidades do Brasil.

b) Sobre a possibilidade de processos judiciais, imaginemos que, no futuro, um dos empregados que deixou de fazer os necessários exames complementares acionasse juridicamente o empregador (responsável pelo cumprimento integral das normas de segurança e medicina do trabalho, conforme art. 157 da CLT; e também pela indenização decorrente dos danos advindos do não cumprimento dessas normas, nos termos do art. 927 do Código Civil) em virtude de uma hipotética doença ocupacional. É fato que ninguém pode deixar de cumprir uma norma sob o argumento de não conhecê-la, mas, e se esse empregador alegasse, como própria defesa, que o responsável pela não realização dos necessários exames complementares foi o “negligente médico”, que apenas lhe fornecia os ASOs e nunca o avisou quanto à necessidade de tais exames? Como o empregador é o responsável maior pela implantação e efetivação do PCMSO (ainda que desconheça tal atribuição), provavelmente teria de custear sozinho uma hipotética indenização ao empregado (devido a chamada culpa in eligendo — art. 932, inciso III, do Código Civil, ou seja, a empresa arcaria com a responsabilidade de ter “escolhido mal” o médico que lhe prestou assessoria). No entanto, o empregador poderia entrar com uma ação futura contra esse médico no sentido de reaver alguma indenização paga ao empregado (ação regressiva — art. 934 do Código Civil).

c) Levando em conta as possibilidades processuais, até mesmo penalmente esse empregador/Médico do Trabalho/”Médico Examinador” poderia ser penalizado, pelos fundamentos que se seguem:

• Art. 19, § 2º, da Lei n. 8.213/1991: “Constitui contravenção penal, punível com multa, deixar a empresa de cumprir as normas de segurança e higiene do trabalho”. Obs.: como o médico atua conjuntamente com a empresa no cumprimento das normas de segurança e medicina do trabalho ele também poderia ser acionado;

• Art. 129 do Código Penal: “Ofender a integralidade corporal ou a saúde de outrem tem pena de detenção de 3 meses a 1 ano; se resultar em lesão corporal de natureza grave, a pena estende-se para 5 anos e, nos casos de incapacidade permanente para o trabalho, a pena será de 2 a 8 anos”. Obs.: se qualificarmos como negligência intencional (dolosa) a liberação dos ASOs sem os exames complementares necessários e obrigatórios à algumas práticas laborais, entenderemos também que poderia haver, por parte do empregador/médico, ofensa à integralidade corporal ou à saúde de algum empregado, o que, de acordo com o Código Penal, se qualifica como crime;

• Art. 132 do Código Penal: “Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto ou iminente pode acarretar pena de detenção de 3 meses a 1 ano, se o fato não constituir crime mais grave”. Obs.: se qualificarmos como negligência intencional (dolosa) a liberação dos ASOs sem os exames complementares necessários e obrigatórios a algumas práticas laborais, entenderemos também que haveria, por parte do empregador/médico, exposição da vida ou da saúde de um empregado a perigo direto ou iminente, o que, de acordo com o Código Penal, também constitui crime.

Por todas as possibilidades de pena descritas, o mínimo que se exige de um Médico do Trabalho/”Médico Examinador”, que “coagidamente” libere algum ASO sem os respectivos e necessários exames complementares — médico este que já estaria atuando de forma negligente — é que ele documente que notificou a empresa quanto à necessidade desses exames, e que a empresa não concordou em fazê-los/pagá-los. Esse documento poderá ser usado como parte da defesa do médico num processo judicial futuro, embora não lhe dê nenhuma garantia de que o magistrado não o impute alguma indenização/pena pela conduta praticada. Esse documento também não isenta a clínica de medicina do trabalho, e a própria empresa (empregadora), das penalidades possíveis advindas do Ministério do Trabalho e Emprego. Ou seja, esse documento estaria longe de demonstrar uma situação ideal, mas alguém já disse: “entre o ruim e o péssimo, ainda é melhor o ruim”.

Daí vem a pergunta que originou este texto: então, como proceder com o empregador que, mesmo diante da necessidade de realização dos exames complementares, se recusa a custeá-los/realizá-los? Não há receita para isso.

Os livros técnicos passam muito longe de estabelecer uma saída harmoniosa e definitiva para essa situação. O que propomos (sobre a não liberação do ASO na ausência de exames complementares essenciais à função) certamente que há muito tempo não é novidade para nenhum dos leitores deste livro. Mas simplesmente dizer ao empregador: “o ASO não será liberado com base no Código de Ética Médica enquanto o Senhor não autorizar a realização dos exames complementares prescritos” pode, infelizmente, gerar um grande desconforto, além de custar o próprio emprego do Médico do Trabalho/”Médico Examinador”. E se isso ocorrer? Cabe-nos perguntar também: de que vale um médico ético e cuidadoso sem ter de quem cuidar (por estar sem emprego)?

Como proceder então com o empregador que, mesmo diante da necessidade da realização dos exames complementares, se recusa a custeá-los/realizá-los?

Entendemos que o Médico do Trabalho/”Médico Examinador” deve investir-se de uma postura política conciliatória, sair de seu consultório e atuar como transmissor de valiosas informações ao empregador, explicando-lhe todos os riscos aos empregados, à empresa e ao próprio médico, diante da ausência dos referidos exames. Sem afrontas ou ameaças, apenas fomentando o bom, embasado e respeitoso diálogo com o empregador, deve tentar convencê-lo quanto a efetivação dos exames complementares prescritos. Bem sabemos que as escolas médicas não se preocuparam com o ensino desse tipo de diálogo, mas é certo que o médico que conseguir fazê-lo poderá obter ótimos e palpáveis resultados.

Mas, se, diante de todas as possíveis tentativas pacíficas de convencimento e conciliação para com o empregador, este ainda se recusar a cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho, implementando o PPRA/PCMSO (como nos ensina que deve ser, o art. 157, inciso I, da CLT), aí sim sugerimos que o médico, por zelo à saúde dos trabalhadores, e também para sua própria segurança jurídica, passe a considerar a ausência daquela empresa dentro de sua carteira de clientes, o mais rápido possível. Ratificamos: o correto é que não se libere nenhum ASO sem os devidos exames complementares solicitados a partir de um PCMSO bem feito.

Autor: Prof. Marcos Henrique Mendanha (GO) – Médico do Trabalho, Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas. Advogado especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP. Perito Judicial / Assistente Técnico junto ao TRT-GO e TRF-GO. Diretor Técnico da ASMETRO – Assesoria em Segurança e Medicina do Trabalho Ltda. Autor do livro “Medicina do Trabalho e Perícias Médicas – Aspectos Práticos e Polêmicos” (Editora LTr). Mantenedor do site www.saudeocupacional.org. Coordenador do Congresso Brasileiro de Medicina do Trabalho e Perícias Médicas (realização anual). Coordenador Geral do CENBRAP – Centro Brasileiro de Pós-Graduações.

O Prof. Marcos Henrique Mendanha é editor do SaudeOcupacional.org e escreve no “Reflexõs do Mendanha”

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