12 maio 2016

A subnotificação do Transtorno de Estresse Pós-Traumático

postado em: Coluna do Lenz

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A PARTE E O TODO

Quem vê a parte, não vê o todo; quem vê o todo, não vê a parte!

Na verdade, há que se olhar da parte para o todo e, do todo para a parte, para que qualquer evento seja compreendido integralmente.

Mas o que isso tem a ver comigo, que sou um profissional de segurança e saúde do trabalho? Muita coisa, acredite!

O que você faria como medida preventiva diante de uma dessas situações: uma trabalhadora que foi estuprada, um gerente de banco que foi sequestrado juntamente com a sua família e obrigado a abrir o cofre para os bandidos, um trabalhador que aparava a grama com um destes “tratorzinhos” tipo carpideira, que por acidente “faz picadinho” de um morador de rua que dormia na grama, um trabalhador que no percurso do trajeto para casa atropela e mata um pedestre, um motorista de ônibus que permanece 20 minutos no “bico de um revólver” assistindo a morte de passageiros, etc. A propósito, nenhum deles sofreu sequer um arranhão, por menor que fosse: sem qualquer lesão. O que existe em comum entre eles é o fato de que todos são visivelmente um evento catastrófico.

Provavelmente, a primeira opinião é a de nem registrar o evento como acidente do trabalho pois, segundo própria lei 8213 em seu artigo 19, se não há lesão ou distúrbio não é acidente do trabalho e, assim restando apenas lamentar pelo ocorrido. Pior ainda, o artigo 21 da mesma lei, para não ficar dúvida, ainda reforça que não é acidente aquele que ocorre sem gerar incapacidade.

Por outro lado, entre os transtornos mentais existe um bem conhecido de todos, o transtorno de estresse pós-traumático, após exposição a um evento catastrófico, com taxas de prevalência que, nos grupos de risco (ex-combatentes, por exemplo), variam de 5 a 75%. O seu quadro clínico se caracteriza por repetidas revivescências do trauma em consciência clara ou em pesadelos (flashback), embotamento emocional, distanciamento do mundo, insônia, estado de excitação autonômica aumentada com hiper-vigilância, sintomas ansiosos e depressivos, bem como ideação suicida, associação com abuso de álcool e outras drogas, rejeição a atividades e situações que lembram o episódio traumático (evitação).

O aumento da violência urbana no Brasil, com altos índices de mortes por ato violento, entre eles, o homicídio, estupros, sequestros, acidentes de trânsito, implica no também aumento do número de eventos catastróficos e, consequentemente o aumento do Transtorno de estresse pós-traumático.

Ora, para estabelecer o diagnóstico de Transtorno de Estresse Pós-Traumático decorrente do trabalho (doença ocupacional) é fundamental o conhecimento prévio da ocorrência do evento catastrófico (acidente tipo), ou em caso contrário, um grande número de casos não receberá o diagnóstico correto, como acontece tão frequentemente. Da mesma forma, para a valorização da importância do evento catastrófico, é também fundamental o conhecimento desse seu nefasto desdobramento em transtorno de estresse pós-traumático.

Como se pode ver, assim como em irmãos siameses, ambos se encontram visceralmente ligados, o “transtorno de estresse pós-traumático” e o “evento catastrófico”.

É uma situação em que um acidente do trabalho tipo (acidente espécie 1), causa uma doença ocupacional (acidente espécie 2), ou como denominamos, um Acidente de Dupla Espécie.

São várias as situações em que um acidente do trabalho pode resultar em doença ocupacional, ou em um Acidente de Dupla Espécie.

São exemplos de acidente de dupla espécie são os acidentes biológicos gerando hepatite, exposição à raiva animal gerando a raiva animal e acidente radioativo gerando tumores. Porém entre os citados acidentes do trabalho, potencialmente geradores de acidente de dupla espécie, apenas o evento catastrófico não apresenta procedimentos padronizados com protocolo oficial, assim não gerando investigação sistemática da maioria dos acidentes catastróficos e consequentemente, resultando em subnotificação de tais eventos.

Dos quatro exemplos de possíveis doenças ocupacionais causadas por acidente do trabalho (tumores, raiva animal, hepatite B e transtorno de estresse pós-traumático), os três primeiros apresentam protocolo oficial de abordagem pelo Ministério da Saúde (acidente biológico, exposição à raiva e acidentes com radioatividade), sendo apenas o evento catastrófico sem atenção por parte das autoridades brasileiras. Tal descaso por tais acidentes (eventos catastróficos) chega a assustar quando comparamos o pequeno número de doenças ocupacionais ocorridos nestes três primeiros casos ao grande número de eventos catastróficos no Brasil, que responde por 10% de todos os homicídios praticados no mundo, um estupro a cada 11 minutos, 58 mil mortes violentas por ano, quarto lugar no mundo em sequestro, 43.075 óbitos e 201.000 feridos hospitalizados em 2014 em acidentes de trânsito segundo o Ministério da Saúde, no mesmo ano 52.200 indenizações por morte e 596.000 por invalidez, segundo o DPVAT, 304.959 Auxílio-Doença Acidentário em 2013 e quando nos deparamos com os dados de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde 21% de todas as mortes são provenientes de atos violentos.

Assim, o registro formal, o controle dos acidentes catastróficos, inicialmente através do seu reconhecimento como um legítimo acidente do trabalho (acidente espécie 1), o acolhimento do acidentado e o suporte psicológico facilitam a prevenção do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (acidente tipo dois), visto que a atenção psicológica é essencial no processo terapêutico e em todas as etapas da reabilitação psicossocial e profissional, assim como o estabelecimento futuro do nexo causal entre ambos pelo SESMT, INSS e em uma eventual ação trabalhista futura na Justiça do Trabalho.

Quem sabe em um futuro próximo na Lista Nacional de Doenças e Agravos de Notificação Compulsória do SUS esteja inserido o evento catastrófico e, o INSS aumente mais um campo para os “acidentes de dupla espécie” com foco nos eventos catastróficos, para facilitar o diagnóstico posterior de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).

Por enquanto as condutas ainda não são uniformizadas pelos órgãos competentes como o Ministério do Trabalho, Ministério da Saúde e INSS. É como se o mesmo filme fosse visto individualmente, de modo que cada um assiste somente a um dos extremos, ou seja, um assiste apenas o início e outro apenas o fim.

Diante desta situação, o médico do trabalho deve estar atento para “além” do acidente de trabalho com presença de evento catastrófico (para o TEPT), assim como o psiquiatra deve estar atento para “aquém” dos transtornos mentais com clínica sugestiva de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (para os eventos catastróficos), de tal forma que tão importante quanto o psiquiatra pensar no diagnóstico de transtorno de estresse pós traumático é o médico do trabalho pensar no evento catastrófico.

Assim temos, o todo, ou seja, o acidente de dupla espécie, formado pelas partes, evento catastrófico e Transtorno de Estresse Pós-Traumático.

Ora, a parte sem todo não é parte; o todo sem a parte, não é todo.

Lz

Autor: Dr. Lenz Alberto Alves Cabral (MG) – Médico do Trabalho, Especialista em Ergonomia pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, Professor convidado da Pós-Graduação em Medicina do Trabalho da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, Diretor da PROERGON – Assessoria e Consultoria em Segurança e Saúde do Trabalhador / Ergonomia, autor do livro “Abre a CAT?” (Editora LTr). Contato: www.proergon.com.br

O Dr. Lenz escreve mensalmente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna do Lenz”

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